Thâmara Kaoru
Do UOL, em São Paulo

Originalmente publicado em 2 de maio de 2019 por Portal UOL

A reforma da Previdência foi considerada constitucional pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, mas alguns pontos ainda podem ser alvos de discussões na Justiça, segundo especialistas, caso a proposta do governo seja aprovada sem alterações.

O UOL conversou com Ivandick Cruzelles, professor de Direito Previdenciário da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Adriane Bramante, advogada e presidente do IBDP Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), e o advogado previdenciário Rômulo Saraiva, para listar alguns temas da proposta que podem acabar na Justiça. Confira:

1) BPC (Benefício de Prestação Continuada)
Hoje idosos com 65 anos ou mais e deficientes de baixa renda recebem um salário mínimo no BPC (Benefício de Prestação Continuada). A proposta é que o benefício seja pago aos idosos de baixa renda a partir dos 60 anos de idade e no valor de R$ 400. A partir dos 70 anos, o valor passaria para o piso nacional. Para deficientes de baixa renda, não haveria idade mínima para ter direito, e o valor continuaria em um salário mínimo.

Para Cruzelles, a assistência social tem por finalidade garantir a vida e promover a integração na sociedade, e com as alterações isso poderia ser questionado. “As mudanças são uma violação da dignidade da pessoa humana, vão reduzir a possibilidade da construção de uma sociedade mais justa, livre e igualitária e vão prejudicar a redução das desigualdades sociais e
regionais.”

2) Capitalização
O sistema de capitalização está proposto na proposta de reforma, mas os detalhes de como funcionará virão por lei complementar. Para Cruzelles, não está claro se as empresas farão a contribuição também, o que pode gerar questionamento no STF (Supremo Tribunal Federal). “O texto não está dizendo que as empresas vão contribuir. Isso pode ser fixado a lei complementar, quando for criada, mas a única garantia é que quem vai contribuir para esse fundo é o trabalhador. Nessa sistemática, você quebra a ideia de que toda a sociedade vai contribuir para o financiamento da seguridade.”

3) Aposentadoria de trabalhador rural
A proposta iguala a idade mínima para homens e mulheres na aposentadoria rural em 60 anos, além de 20 anos de contribuição. Hoje, a aposentadoria rural permite que mulheres se aposentem aos 55 anos e homens aos 60 anos, além de 15 anos de contribuição.

Saraiva afirmou que nas aposentadorias urbanas a idade mínima da mulher subiu dois anos, passando dos atuais 60 anos para 62 anos. Para as mulheres rurais, o aumento foi de cinco anos, passando dos 55 anos para os 60 anos, o que pode ser contestado.

Para Cruzelles, a mudança é um retrocesso social. “A gente sabe quais são as condições agressivas de quem trabalha no campo. A proposta deixa os requisitos para aposentadoria mais duros para a mulher do campo. É um retrocesso social.”

4) Aposentadoria especial
A regra de transição para a aposentadoria especial, para quem trabalha em condições prejudiciais à saúde, pode ser alvo de discussões, segundo Adriane. Hoje, é possível se aposentar aos 15 anos, 20 anos ou 25 anos de contribuição, dependendo da atividade profissional.

A proposta prevê que, na regra de transição, é preciso atingir uma combinação de idade e tempo de contribuição, que aumenta a cada ano. Para atividades prejudiciais que garantem aposentadoria com 25 anos de contribuição, por exemplo, a pontuação começa em 86 pontos e segue até 99 pontos.

Um segurado que começou a trabalhar com 21 anos em uma atividade insalubre, por exemplo, tem hoje 45 anos e 24 anos de contribuição e conseguiria se aposentar ano que vem com a regra atual. Se a proposta for aprovada como está, ele entraria na regra de transição por pontuação. Ele tem hoje 69 pontos, mas só conseguiria se aposentar em 2034, quando terá 60 anos.

“A transição se quer serve para quem está a um ano da aposentadoria especial”, disse ela.

5) Aposentadoria por invalidez
Saraiva afirmou que a diferença de cálculo na aposentadoria por invalidez para quem sofreu um acidente de trabalho, doença profissional ou doença do trabalho pode ter discussão na Justiça. Para esses casos, o benefício seria de 100% da média salarial de todos os salários. Para os demais casos, o valor do benefício será de 60% da média salarial, mais 2% a cada ano que exceder 20 anos de contribuição.

“Qual a motivação para essa diferença? Um acidente de trabalho tem uma relevância maior do que uma pessoa que descobriu um câncer?”, disse o especialista.

6) Pensão por morte
A proposta altera as regras da pensão por morte e permite que o valor do benefício fique menor do que um salário mínimo. Para Adriane, o tema poderia ser considerado inconstitucional pela falta de proteção social que geraria para os dependentes.

7) Proteção na maternidade
Saraiva afirmou que no artigo 201 da proposta, o governo mudou o termo “proteção à maternidade, especialmente à gestante” para “salário-maternidade”. Para ele, essa troca no texto pode acabar com a estabilidade gestacional e o direito à amamentação na volta ao trabalho, por exemplo.

“Se fosse ficar igual, não teria necessidade de mudar o termo. Se mudou, é porque estão querendo dar um novo destino a essa proteção. Esse aspecto pode ser motivo de inconstitucionalidade.”

8) Contribuintes facultativos sem auxílio-doença
Segundo Adriane, hoje, o artigo 201 da Constituição fala dos riscos sociais que a Previdência cobre, que são eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada. A proposta muda essa redação e diz que a cobertura será para eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada.
Para Adriane, o fato de se colocar na Constituição que a proteção é “para o trabalho” pode ser uma brecha para acabar com a proteção para os facultativos (como donas de casa, estudantes e desempregados), que contribuem por conta própria e não exercem atividade profissional. Eles poderiam ficar sem auxílio-doença, por exemplo.

9) Pontos definidos por lei complementar
Saraiva afirmou que a proposta do governo abre diversas possibilidades de o texto da Constituição ser alterado por lei complementar depois da aprovação da reforma. “A proposta está flexibilizando mudanças na Constituição em demasia. Isso pode ser questionado por violar a necessidade de se alterar a Constituição apenas por PEC, principalmente se essas alterações afetam direitos fundamentais”, disse.