Por Elaine Behring*

Originalmente publicado por Esquerda Online, em 11 de julho de 2019

No mesmo difícil dia 10 de julho de 2019, em que perdemos importantes vozes dissonantes em relação ao “coro dos contentes”, como o grande Francisco de Oliveira e o afiado Paulo Henrique Amorim, a Câmara dos Deputados aprovou por 379 votos contra 131 da oposição, o texto base do relator da “reforma” da previdência. Trata-se de mais um capítulo trágico – do ponto de vista da classe trabalhadora – do golpe de Estado de novo tipo de 2016, onde as instituições “funcionam”, porém, cada vez mais apartadas das maiorias, conforme aponta Felipe Demier, que em sua coluna no EOL onde hoje comenta esse aspecto e a dimensão política dos acontecimentos. Arvorando-se em representantes da vontade nacional, a maioria dos deputados, inclusive segmentos minoritários de partidos com posições contrárias, a exemplo do PDT e do PSB, e com o apoio de governadores petistas, apesar da posição contrária  do partido que foi seguida por todos os seus parlamentares, a maioria dos deputados não escutou a voz majoritária das ruas. Se não damos ouvidos às manipulações de dados da grande mídia – que ademais fala em déficit da previdência há 30 anos embora ele não exista – é possível afirmar que as manifestações nas ruas disseram não à contrarreforma. Que crescem as vaias a este projeto mesmo entre os que conseguiram pagar os caríssimos ingressos para a final da Copa América. Contudo, esses deputados optaram por dar voz ao verde-amarelismo tacanho, que defende medidas contra si mesmo, que não compreende o significado da contrarreforma, segundo o Datafolha mas a apoia na esteira do disseminado discurso da “salvação nacional”. Uma escolha, claro, regada à liberação de cerca de 40 milhões para cada deputado em emendas parlamentares, ou seja, desenhada pela velha, caquética política, tendo à frente Rodrigo Maia, o mais novo queridinho da mídia brasileira, em busca desesperada de uma liderança menos bizarra que a família “outsider” no poder, e mais confiável do núcleo duro da burguesia brasileira para as próximas eleições.

Nosso enfoque aqui é sobre o que estamos perdendo com a votação de ontem, quem vai pagar esta conta de forma mais dura, e quem está ganhando com esse que, junto à contrarreforma trabalhista e a Emenda Constitucional 95 – conhecida como a EC do Fim do Mundo – representam os mais draconianos ataques às condições de vida e de trabalho das maiorias no Brasil recente. Ademais são políticas intimamente relacionadas e que prometeram a mítica retomada do crescimento, à custa da expropriação de milhões de trabalhadores(as). Mais uma vez estão socializando os custos da crise, com promessas que não serão cumpridas, mas com medidas que locupletarão os banquetes dos ricos.

Seguridade Social: uma espécie de Geni no âmbito do ajuste fiscal permanente

A luta pela redemocratização do país emplacou o conceito constitucional de seguridade social no Brasil, em 1988, com mais de 40 anos de atraso em relação às suas primeiras formulações, e à brasileira – com uma cobertura bem mais restrita de direitos. Mesmo assim, desde o dia seguinte, a começar pela derrota política nas eleições de 1989 com a eleição de Collor, foram 31 anos de ataques sistemáticos ao conceito de seguridade social, aos direitos de previdência social, saúde, assistência social e trabalho ali previstos, e destacadamente, ao seu financiamento. Por isso é tentador lembrar do refrão buarqueano: “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni, ela é feita para apanhar, ela é boa de cuspir” (Geni e o Zepellin, Chico Buarque).

Se Collor não era o condottiere ideal e teve vida curta, FHC assumiu o timão da nave nacional com o Plano Real em 1994, de controle da inflação e estabilização econômica, e na sequência, foi eleito presidente, lançando, em 1995, o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE), um documento a nosso ver orientador de todo o período da redemocratização e de ajuste fiscal permanente. O PDRE abria afirmando que a Constituição é perdulária, rígida e falando da necessidade urgente da “reforma da previdência”. Não existe em suas linhas qualquer referência à seguridade social. Desde então, houve no país várias iniciativas de contrarreformas da previdência – todas culpabilizando esta importante política social pelas dificuldades econômicas e pela “crise do Estado” e “desequilíbrio fiscal”: com FHC, em 1998, atacando o Regime Geral; com Lula em 2003, atacando os Regimes dos Servidores Públicos; com Dilma, atacando as pensões e o seguro-desemprego e estimulando os fundos de pensões fechados para servidores públicos. Houve uma tentativa derrotada, com a PEC 241 de Temer, após a greve geral de 28 de abril de 2017 quando os trabalhadores diziam “reaja agora ou morra trabalhando”. Ali Temer foi obrigado a “criar” a intervenção militar no Rio de Janeiro para não assumir sua derrota.

O fato é que há um repetido argumento, desde 1995, de governos com matizes diferentes: o país está quebrado e a crise é do Estado, produzida pelo “déficit da previdência”. Há jovens de hoje que nasceram escutando esse mantra, e não conseguem compreender que nunca irão se aposentar. A título de exemplo, Carlos Alberto Sardemberg, uma das “autoridades” econômicas da Rede Globo e da CBN,  reivindica os dados de um estudo do Instituto Millenium, um aparelho privado de hegemonia da direita liberal, que tenta nos convencer que a previdência ocupa 54,7% dos gastos do governo federal (disponível desde 7 de maio na página da entidade). No entanto, nossos estudos orçamentários (GOPSS/UERJ, GESST/UnB e ANFIP, dentre outros)  mostram que a previdência social é o segundo item de gasto do governo federal após o pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública que obstinadamente não entram nessa conta enviesada dos liberais, onde estão apenas os gastos primários do governo federal. E mostram mais: que a seguridade social conseguiria arrecadar e custear seus gastos (que ademais geram renda, consumo e tributos pelo país), se não fossem figuras do ajuste neoliberal como a Desvinculação de Receitas da União, que hoje retira 30% do Orçamento da Seguridade Social, o Superávit Primário alimentado pela DRU, e as isenções fiscais sobre as fontes da Seguridade Social, com destaque para a COFINS, para segmentos determinados.

Portanto, não houve e não há déficit da previdência. O que temos é um ajuste fiscal draconiano que tem relação com a EC 95, para canalizar recursos para o pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública, este sim o primeiro item de gasto do OGU, no mesmo passo da leniência fiscal para com o empresariado brasileiro que deve à previdência mais de 500 bilhões de reais. Mas existe algo mais, subjacente à contrarreforma: o “olho grande” nos recursos que a seguridade social mobiliza, tendo em vista sua apropriação pelo capital, especialmente pelas instituições financeiras, diga-se, jogar parte dos trabalhadores no mercado de capitais por meio da capitalização. Esta medida foi retirada do relatório que foi votado ontem, num recuo que consideramos importante e que foi resultado da luta, que conseguiu mostrar sua perversidade gerando um incômodo real entre os parlamentares. Mas há um acordo com o ultraliberal pinochetista Paulo Guedes – interessado direto na matéria, dada sua íntima relação com os bancos (o BTG-Pactual) – de retomá-la adiante, pelo que precisaremos estar atentas(os). Também foram retirados do texto-base o ataque à aposentadoria rural e ao Benefício de Prestação Continuada para idosos, que já identificávamos como “bodes na sala” para a negociação. Mas é preciso dizer: esses elementos não tornam o texto-base da contrarreforma aprovada ontem menos covarde, já que seu núcleo duro está mantido e constitui uma imensa derrota para a classe trabalhadora brasileira. Senão vejamos.

A contrarreforma da Previdência de 10 de julho de 2019: covardia e manutenção de privilégios

Vou comentar alguns aspectos do texto aprovado. O mais violento ataque sofrido pelos trabalhadores, especialmente para os jovens a ingressarem no Regime Geral da previdência, é a combinação entre idade mínima – 65 anos para homens e 62 para as mulheres – e o tempo de contribuição mínimo de 15 anos para mulheres e 20 para os homens. Apenas com 40 anos de contribuição um trabalhador poderá receber o teto a que tem direito, e claro, limitado pelo teto baixo da previdência social brasileira (hoje em torno de R$ 5,8 mil – 5,6 SM). O cálculo da aposentadoria será pela média do tempo de contribuição, com tendência a baixar o valor final da aposentadoria. Pensionistas receberão 50% da pensão a que teriam direito, mais 10% por dependente até sua emancipação, numa medida que atinge especialmente as mulheres trabalhadoras. No caso da aposentadoria por invalidez, exceto acidentes de trabalho e quem recebe apenas um salário mínimo, ela se reduz a 60% do que seria hoje o direito do(a) trabalhador(a).

Pensamos que este é um processo claro de expropriação dos meios de vida dos trabalhadores, e que vai gerar um generalizado e ainda mais ampliado que hoje, contexto de empobrecimento da população no médio prazo.  Estamos num país onde a taxa de subutilização da força de trabalho, segundo o IBGE é hoje de 25%, a maior desde 2012. Isso representa um grupo de 28,3 milhões de pessoas que reúne os desocupados, os subocupados com menos de 40 horas semanais, e os que estão disponíveis para trabalhar, mas não conseguem procurar emprego por motivos diversos. Há ainda cerca de 4,9 milhões de pessoas em situação de desalento e assim chegamos a espantosa cifra total de 33,2 milhões de pessoas aptas ao trabalho e que não o encontram. A taxa de rotatividade no mercado de trabalho brasileiro alcançou 62,8%, em 2014. Entre 2003 e 2007, o índice ficou na média de 54% no segmento de celetistas (trabalhadores com carteira assinada), e passou por uma elevação em anos recentes, e chegou a 63% entre 2008 e 2014. Os setores mais afetados pelas altas taxas de rotatividade são a agricultura e pecuária, a construção civil e o comércio. São setores cujas características próprias da atividade econômica incidem nessa questão, seja por estarem atreladas a aspectos sazonais ou por causa da dinâmica de produção, como é o caso da Construção Civil, com trabalhadores alocados em obras por prazo determinado.

A pergunta óbvia é: como sustentar de 15/20 a 40 anos de contribuição para o direito à aposentadoria, cruzando com a idade, com essas taxas de desemprego e rotatividade? O drama para os trabalhadores se amplia com a contrarreforma trabalhista, que ampliou a precarização no emprego e não gerou empregos em detrimento dos discursos apologéticos à época. Na verdade, esta última veio para facilitar a rotatividade e forçar os trabalhadores a aceitarem qualquer trabalho para a máxima extração de mais-valor, ou o que a CNI chamava de “alívio das empresas” (Cf. o artigo “A ‘reforma’ trabalhista gerou os efeitos pretendidos” de Jorge Luiz Souto Maior, Procurador do Trabalho).

A contraface dessas propostas foi dar de presente aos ruralistas, no mesmo relatório, o perdão de dívidas bilionárias, ou seja, tem-se aí o banquete dos ricos.

A Contrarreforma da Previdência é racista

O conjunto CFESS/CRESS, organização política das(os) Assistentes Sociais brasileiras(os) lançou uma campanha de combate ao racismo no Brasil e que neste ano de 2019 teve o seguinte mote: “regressão de direitos tem classe e cor, assistentes sociais no combate ao racismo”. Subscrevendo e dialogando com essa campanha, sustentamos que a contrarreforma da previdência reforça o racismo no Brasil, considerando que os setores mais atingidos serão os trabalhadores(as) pobres e negros(as). É uma contrarreforma conduzida de forma misógina e racista, porque na classe esses – mulheres e negros(as) – serão os setores mais atingidos.

Recentemente o atual Presidente da República deu na TV uma declaração emblemática: “racismo é coisa rara no Brasil”. Porém, se foi a primeira fala sobre este assunto no cargo em que ocupa hoje, esta não foi sua primeira fala pública. Vejamos mais algumas: em conhecido discurso de ódio contra os negros Quilombolas e indígenas no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, Bolsonaro afirmou que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, referindo-se à um negro Quilombola como um senhor de escravos referia-se durante a época da escravização; perguntado por Preta Gil o que faria se seu filho se casasse com uma mulher negra, afirmou que seu filho “foi bem-criado”;  e disse ainda ao Jornal Estado de São Paulo: “Eu não entraria em um avião pilotado por um cotista nem aceitaria ser operado por um médico cotista”.  Portanto, não se trata de mais uma bizarrice “politicamente incorreta” para ganhar espaço polêmico de mídia. Pelo lugar à que foi levado por 57,8 milhões de votantes (contra os 47 milhões de Haddad, 10 milhões de brancos e nulos e 31 milhões de abstenções), se trata de uma lógica classista e racista de governo, no poder, na gestão e direção do Estado brasileiro, com impactos sérios sobre a maioria da população brasileira, a exemplo da contrarreforma da previdência.

Vejamos, para finalizar nossa reflexão sobre o fatídico dia 10 de julho de 2019, alguns aspectos da desigualdade brasileira e que articulam a condição de classe e raça. Os dados que eu passo a expor vem das pesquisas PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), realizadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Antes de prosseguir quero reiterar que a defesa do IBGE e de um Censo 2020 que nos coloque diante de nós mesmos é absolutamente central. O desmonte do IBGE faz parte deste projeto de ataque à razão, à ciência e ao conhecimento, o que envolve também a universidade. Mas, voltemos aos dados do IBGE para sustentar o caráter também racista e misógino desta contrarreforma da previdência.

Ainda sobre Trabalho e renda, a PNAD Contínua de 2017 mostrou que há forte desigualdade na renda média do trabalho no Brasil: R$ 1.570 para negros, R$ 1.606 para pardos e R$ 2.814 para brancos. Reparem que os valores estão muito abaixo do teto da previdência (que repetimos, é muito baixo) e que com os impactos da contrarreforma irá diminuir ainda mais a renda de pretos(as) e pardos(as). O desemprego, já referido anteriormente, também é fator de desigualdade intraclasse: a PNAD Contínua do 3º trimestre de 2018 registrou um desemprego mais alto entre pardos (13,8%) e pretos (14,6%) do que na média da população (11,9%). Vale lembrar que o desemprego da média da população brasileira cresceu nos primeiros meses de 2019, alcançando 12,7% da População Economicamente Ativa.

O acesso à educação no país também é desigual, incidindo sobre as condições de empregabilidade e acesso à previdência social. A taxa de analfabetismo no Brasil é mais que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) do que entre brancos (4,2%), de acordo com a PNAD Contínua de 2016. Quando se fala no acesso ao ensino superior, de acordo com a PNAD Contínua de 2017, a porcentagem de brancos com 25 anos ou mais que tem ensino superior completo é de 22,9%. É mais que o dobro da porcentagem de pretos e pardos com diploma: 9,3%. E ainda tem deputado estadual no Rio de janeiro querendo acabar com a política de cotas, o mesmo que quebrou a placa em homenagem à Marielle Franco! Já a média de anos de estudo para pessoas de 15 anos ou mais é de 8,7 anos para pretos e pardos e de 10,3 anos para brancos.

Dados também da PNAD, de 2015, mostram que apesar dos negros e pardos representarem 54% da população na época, a sua participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. Ou seja, a classe trabalhadora em seus extratos mais pauperizados é negra. Nessa amostra de 2015, tem-se que no grupo do 1% mais rico da população, a porcentagem de negros e pardos era de apenas 17,8%.  A informalidade atingia 48,3% da população negra contra 34,2% da população branca. O cruzamento desses dados com a o indicador sexo, nos leva à situação dramática das mulheres negras com as piores colocações em todos esses indicadores sociais.

Estes são dados que mostram, ao nosso ver, a desigualdade de condições intraclasse trabalhadora para inserção no mercado de trabalho no país, o que irá incidir no acesso também desigual à previdência social. Assim a contrarreforma atinge a classe trabalhadora na sua totalidade, mas de forma particular aos negros e negras e mulheres de uma forma geral.

Para fechar, abrindo… 

Escrevemos essas linhas sob o impacto do dia 10 de julho, quando nos foi imposta uma derrota importante na esteira de outras, a principal, a extrema-direita ultraliberal erigida a governo do país. Temos reagido e lentamente há um processo de desgaste precoce do governo. Mas sabemos que mal saímos das cordas, como lucidamente disse Guilherme Boulos recentemente. Há muita luta pela frente, e se trata de luta de classes, num contexto defensivo. O inventário de perdas e danos ainda vai merecer outros textos e reflexões, mais maturadas. Sabemos que elementos importantes ficaram de fora desta elaboração inicial. No entanto, não quis deixar passar o calor dos acontecimentos, porque dar elementos para a luta é fundamental e ela vai continuar. A convite de Valério Arcary, não vamos esmorecer. A luta nos chama, essa que foi ainda insuficiente para o tamanho da tarefa, mas que está acontecendo, num desgaste cotidiano deste projeto destrutivo. Não subestimemos o recuo da capitalização da previdência social, nem tampouco nossa derrota no dia de ontem. E sigamos, persistentes.

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*Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). Foi presidente da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). É professora associada da UERJ, na Faculdade de Serviço Social, onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS), e o Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). Tem publicações na área de política social, orçamento público, fundo público e serviço social.