1º de Maio – Dia do Trabalho
Uma reflexão sobre o tempo e o trabalho
Cristiano Bonneau*
Pensemos a esfera do trabalho partindo se dois momentos distintos: o trabalho enquanto atividade e o ócio (otiu). No entanto, sua conciliação, principalmente em uma sociedade cuja finalidade é a produção de bens e em que os valores morais se pautam cada vez mais nas relações de consumo, se apresentam em uma primeira camada bastante simples, o que facilitaria a análise. Eis um ledo engano, em nossa convivência como um jogo de aparências, convenções e mediado por uma complexa moralidade. Há um leque imenso de acusações entre o ócio e o trabalho, que procuram edificar-se a si mesmos, tratar-se como inimigos e refutar um ao outro em sua existência. Tratemos aqui de três momentos fundamentais na relação do ocidente com o trabalho, como uma reflexão necessária no Dia do Trabalho. O primeiro, na Idade de Bronze, cujo melhor retrato se dá no texto do beócio Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias. O segundo, no trabalho como castigo, herança da queda do paraíso determinada por Deus. E finalmente, a viragem da noção de trabalho como realização da essência do homem, proposta, sobretudo, pelo marxismo.
Tendo como tema principal a justiça (dikê), o que vemos na obra de Hesíodo em sua totalidade é como o mundo já fora concebido e organizado desde sua gênese pelos deuses, que se empenharam profundamente para imprimir, em todas as suas criações o máximo de suas próprias virtudes. Mesmo as suas paixões, todas levadas ao extremo, não foram suficientes para impedir um ordenamento ainda maior do que qualquer desejo particular. A natureza despertou nos gregos uma admiração imensa e um orgulho geral de que o homem tem a sua origem nela. Em grande parte, esta natureza, tendo sua compreensão dirigida à Deus ou como o lugar de primazia da ciência moderna, ainda guarda esta carga conceitual. A crença hoje estabelece, que o seu desiquilíbrio pode significar a bancarrota da própria espécie humana. Na dinâmica e desenvolvimento de cada ser vivo, cada estrutura natural (montanha, vulcão, corais, etc…) e manifestação de força da natureza (o raio, a chuva e a neve), o que permanece evidente é o logos que permite o aparecimento e sustenta cada manifestação do cosmos. Essa natureza é decorrência do trabalho incessante de todos os deuses que lutam para manter a harmonia entre as partes do universo. Por essa razão, o trabalho aparece como a capacidade do homem em interagir com a natureza, no entendimento de sua lógica própria e na aceitação de se fazer parte desta estrutura primordial, com potência ativa de, entre outros atributos, engendrar a vida. No culto aos deuses, estavam todos os elementos que favoreciam o cotidiano, desde a enxada, o cavalo e o cesto. As cenas registradas nos vasos gregos revelam inúmeras atividades no âmbito social e aparecem, juntamente com proezas e ações atribuídas aos deuses e heróis. Isto não é apenas uma prova de que os deuses se faziam presentes na vida dos mortais, mas que, vivenciavam o dia a dia de todos, protegendo, abençoando, aconselhando, praguejando, etc… Da mesma forma, os sarcófagos gregos, e em seguida os romanos, testemunham que o trabalho é parte edificante da vida do povo antigo.
A segunda concepção de trabalho dá-se no âmbito da religião, em especial a cristã. O Gênesis nos apresenta uma verdadeira enciclopédia. São vários os discursos que atravessam o primeiro livro. Podemos perceber, o geográfico, o histórico, o arqueológico, o psicológico e assim por diante. Este livro também relata um drama, causa do suplício para toda a humanidade: a queda. Éramos extremamente felizes juntos ao criador, e nada nos faltava, tendo substancialmente todas as necessidades atendidas. Contudo, eis que surge a desobediência, o desafio, a curiosidade e a desconfiança. A mulher, como símbolo do saber, desde a deusa Atená, quebra a harmonia com o divino assumindo seu próprio destino, contestando a vida pela pura necessidade. Diferente de todos os outros seres que habitavam o paraíso, o homem descobre então a sua liberdade e resolve usá-la. Este rompante teve várias consequências; a vergonha, a dor ao dar a vida, a expulsão e finalmente, o trabalho. Deus decretara a saída do homem do paraíso e condenara este ao trabalho, se desejasse de alguma forma se manter vivo. O pecado original marca um caminho sem volta para a humanidade. Não importa onde nasças, estamos fadados a buscar a nossa sobrevivência, portanto, ao trabalho. Este momento primeiro justificará muitos sentimentos vindouros e muitas ações humanas que condizem com a barbárie. Cada um, quando surge neste mundo, carrega o estigma da queda de outrora, a ilusão perdida da felicidade humana. Cada vez que o trabalho aparece neste contexto, há uma recuperação de uma memória e um imaginário coletivo, que mesmo rarefeito, opera de forma negativa, aproximando e buscando conciliar o trabalho à um sentimento extremamente doloroso e vergonhoso. Eis dois sentimentos pelos quais lutamos no dia a dia para expurgá-los e até mesmo, purificá-los. O trabalho divide então esta dupla função, que consiste em promover uma memória poderosa em ressentimento e buscar então um alívio ao aviltamento humano. Por essa razão, o trabalho causa comoção, pois nos remete ao começo dos tempos, ao exato momento da queda. Em seguida, propõem uma superação, um desejo austero de recuperar o tempo perdido. Há um sentimento ambíguo atuando neste palco de afecções, que não se dá em opostos, mas que nos conduz a um caminho de suplício crescente.
A última noção de trabalho é uma reinvindicação do próprio espírito transformador. O homem como moldador da natureza representa historicamente o passo necessário para a reviravolta do mundo contemporâneo. Sem nenhum vínculo de moralidade fechada, utilizando-se de todos os valores que lhe convém, a relação do homem com a natureza sofre uma mutação drástica, torcendo a idéia de trabalho até depurar de toda a sua carga pesada religiosa e filosófica. Mais um ponto essencial de distinção entre a humanidade a animalidade, a esfera do trabalho afirma que só há abstração e idealidade no homem, e isso é o que lhe faz humano. Existe agora uma dignidade, um privilégio e uma realização da essência humana em afirmar-se como ser da idealidade, da racionalidade e da abstração. Obviamente existem animais que compõem sociedades, no entanto estes não disputam modelos e sistemas de governos. Por não possuírem história, não sofrem modificação e sua vida continua tal qual era desde sua aparição. A evolução neste caso, diz respeito apenas às adaptações necessárias para manter as espécies vivas em acordo com as variantes da própria natureza. A abelha produz um losango e em seguida uma cadeia deles para compor sua morada, sem saber que este polígono é distinto de um quadrado, de um círculo e até mesmo, de um triângulo. Portanto, é a razão que promove a mudança no mundo. Esta prevê, calcula, idealiza, abstrai e executa, sendo o demiurgo do mundo e marcando exponencialmente as formas de interações humana. O trabalho aparece aqui como a categoria mais fundamental de transformação da natureza e, portanto, de todas as sociedades. Com Hegel e em seguida em Marx, o trabalho se revela como atividade humana por excelência, como demonstração inequívoca de nossa essência. Nos realizamos no trabalho, pois esta atividade nos proporciona a sociabilidade, o enfrentamento da natureza e a nossa própria realização. Com muita propriedade, demonstrou-se que todo homem perfaz a sua própria natureza, constrói a si mesmo, seu próprio destino e determina a História. Não existe humanidade fora da esfera do trabalho, tamanha a sua importância e reflexo da atividade eminentemente humana. Tornou-se assim, a verdadeira possibilidade de construção e conquista das riquezas materiais e espirituais da humanidade. O trabalho mudou a nossa concepção de tempo e as nossas condições de sociabilidade. Por seu valor intrínseco e agregado, possibilitou que um indivíduo apenas pudesse em somente um lapso de sua vida, acumular bens suficientes para viver várias vidas então. A forma como o trabalho enquanto o modus de produção da riqueza, o método pela qual este é explorado, ou seja, o lucro, e ainda, o tempo que por estes são engendrados é fundamental para compreendermos as mudanças de regime e legislação que são propostas pelas forças legislativas, executivas e judiciárias. A própria Previdência, como resultado da força de trabalho também acompanha a mesma lógica. A exigência do tempo instantâneo, o fim dos projetos a longo e médio prazo (as carreiras são exemplos desse processo) e o império do efêmero nas relações humanas são os parâmetros da sociabilidade atual. A imposição é pela mudança, que deve ser executada todos os dias, e o único apego possível é àqueles das novidades. O dia do Trabalho nos aponta em sua construção histórica a necessidade de compreendermos o seu significado atualmente. Apesar de suas mudanças conceituais, ainda assim, o trabalho pauta a nossa visão de mundo e nossas acepções políticas.
(*) Professor do Depto. de Ciências Sociais – CCAE, pesquisador em Filosofia Moderna e Presidente da ADUFPb – Seção Sindical do ANDES-SN.
(**) Foto: La Main de l’homme – Sebastião Salgado