Jaldes Meneses
Permitam-me os leitores abordar na coluna de hoje um assunto perene em vez de um dos temas da agitada conjuntura política. Dos grandes autores clássicos da política empenhados na crítica ao contrato social burguês – cito, por exemplo, Rousseau –, Marx foi de longe o mais radical. Ninguém raspou mais fundo o tacho da crítica. Em um movimento teórico se encaminha desde a “Crítica (e da Introdução) da filosofia do direito de Hegel” (1843), ele afirmou a necessidade de o processo das revoluções seguir em frente, passar do conteúdo “político” do constitucionalismo burguês ao “social” da revolução proletária, seguir da “emancipação política à emancipação humana”. Enfim, Marx realizou a “crítica da política” dos resultados dos processos de revolução burguesa, mas resta a pergunta do que fazer com a política.
É possível superar a política, desfazer-se dela, jogá-la no relicário da história em alguma sociedade humana (comunista) no futuro? Basta conceber a obra de Marx simplesmente como uma crítica negativa da política? Ou haverá em algum ponto da dialética do poder social a possibilidade de haver de um momento positivo, agora sem Estado, é claro, contudo persistentemente político e saturado e mediado por instituições novas, mas que funcionariam como verdadeiras antíteses do Estado? Se quisermos estudar e especular à sério a questão da extinção do Estado, a remissão aos textos do jovem Marx constituem um importante ponto de partida, mas insuficiente.
Vale a pena situar, brevemente, os termos exatos da polêmica: em vez de uma mediação institucional, o jovem Marx defendia a extinção do Estado e a constituição de relações ad hominem (homem a homem, sem intermediários.
O próprio Marx começou a responder a essa questão do ponto de vista da filosofia política, superando, ainda na juventude, a influência de Feuerbach e se voltando à dialética de Hegel, que nada tinha de “cachorro morto”. A passagem teórica de Marx é rápida. Ocorre entre 1943 e 1844, e é feita em escritos cerrados, repletos das frase altissonantes e repletas de virtuosismo literário empolgante e apaixonado. Em “Sobre a questão judaica”, por exemplo (um texto emblemático muito retomado por exegetas atuais, quando o assunto é a crítica dos direitos humanos), um típico texto de 1843, o jovem Marx estava encharcado da influência de Feuerbach e distante da dialética hegeliana. Além do uso e abuso da nomenclatura feuerbachiana (essência humana, homem genérico etc.), neste texto, o fato da alienação do indivíduo-mônada-na-sociedade-civil-burguesa era absoluto, direto e imediato. Sem mediações, portanto, questão que muitas vezes passa despercebida por muitos dos exegetas atuais. Havia, neste caso, uma importante lacuna no método investigativo de Marx: faltava detectar a presença atuante de mediações sociais ativas entre a sociedade civil e o Estado.
Muita gente boa pensa que Marx nasceu dialético, uma evidente bobagem. A dialética em Marx ressurge através da superação da influência de Feuerbach, no momento em que o pensador revolucionário alemão se volta novamente a Hegel e à dialética – depois de tê-lo abandonado por um breve tempo (entre os textos mais famosos de ausência de dialética, nos termos do diálogo com Hegel, cito “Crítica da filosofia do Direito” e “Questão judaica” ). O diálogo afirmativo com Hegel, em vez do simples ataque feuerbachiano, só vai ocorrer precisamente no terceiro caderno dos “Manuscritos econômico-filosóficos” (1844), quando a categoria decisiva da mediação passa a compor o arsenal heurístico de Marx. Quem muito bem compreendeu a questão foi o filósofo frankfurtiano Theodor W. Adorno, para quem a mediação sempre é fundamental. Todas as relações humanas que duram, que são permanentes, são mediadas. Se uma relação for “ad hominem “[homem a homem] e ato contínuo não criar raiz pelas mediações que porventura se estabeleçam, as relações serão de circunstância. Em vez de se firmarem, esfumam e desaparecem.
A partir desse ponto, se é evidente a dialética nos trabalhos de economia política, no tratamento da política a questão ficou mais implícita que propriamente explicitada. Por exemplo, a expressão sociedade civil, junto com outros termos do vocabulário juvenil, vão sumir na obra madura de Marx. Nos últimos anos de vida, contudo, as preocupações juvenis acerca das relações entre Estado e sociedade civil retornam, em escritos fundamentais, como “A guerra civil na França” (1871) – sobre a Comuna de Paris – e “Crítica ao programa de Gotha” (1875) – sobre o direito e comunismo. Mesmo retornando, Marx não chegou a retrabalhar especificamente o conceito de sociedade civil no sentido de sua “ampliação”. No âmbito da tradição marxista, bem depois, o trabalho do conceito coube a Gramsci.
Gramsci parte de Marx e de Hegel para esboçar um novo conceito de sociedade civil, diferente dos dois, reformulando a teoria a partir do estudo das determinações sociais novas que a sociedade civil ganhou no Ocidente, principalmente após a emersão definitiva do capitalismo monopolista (começo do século XX). Ele verificou que dois processos dialéticos, simultâneos e contraditórios ocorrem na nossa sociedade: o fortalecimento da máquina do Estado e a ampliação da sociedade civil, que não é mais simplesmente uma esfera burguesa.
A grande novidade de Gramsci é que ele por assim dizer “ampliou” o conceito de sociedade civil. Sem desconsiderar as determinações de Marx, por ele incorporadas, verificou que a sociedade civil contemporânea é uma estrutura dotada de novas superestruturas que não são Estado. As organizações sociais de classe se desenvolvem de tal modo que criam estruturas próprias: os sindicatos, os partidos, os intelectuais etc. Em suma, a sociedade civil contemporânea não é mais aquela do século XIX, descrita por Marx. As determinações primitivas do conceito seguem operando, mas também surgem inéditas determinações. Isso se chama dialética.