Jaldes Reis de Meneses
Logo que recebi pela manhã a notícia de seu falecimento tive alguma dificuldade em escrever minhas lembranças de Carlos Nelson. Mas creio que devo escrever, mesmo modestamente, um pequeno depoimento pessoal. Ele foi um professor muito generoso comigo, me recebeu de braços abertos no Rio de Janeiro na condição de orientador de minha vontade de escrever uma tese de doutorado sobre Gramsci, mas cujos contornos não estavam claros. Com o tempo, escolhi o tema da revolução passiva, a partir de uma embocadura no conceito de relação de forças comunista sardo, que percebi sem fundamental, mas que não era devidamente levado em consideração na bibliografia gramsciana. Carlos Nelson me estimulou e passei o ano de 2000 – começos do novo milênio –, de volta a casa em João Pessoa, e após a leitura completa dos Cadernos do Cárcere, me meti a redigir uma tese de doutorado com muitos e-mails trocados com Carlos Nelson. Ainda tenho alguns desses e-mails, mas não os encaro como correspondência privada, pois as respostas de Carlos Nelson, sempre redigidas com limpidez, além de ter me ajudado em muito, tem serventia teórica, tanto pelo brilhantismo de algumas sacadas de Carlos Nelson, como pelo humor de algumas de suas tiradas.
Inventei logo no começo de fazer uma analogia entre o conceito de ondas longas de Ernest Mandel e revolução passiva de Gramsci. Carlos Nelson sabia que a empreitada tinha algo de espatafúrdia, mas longe de desencorajar, aconselhou seguir em frente, afirmando que o processo histórico da social-democracia européia (e por extensão do keynesianismo) tinha tudo a ver com revolução passiva. Com o tempo, abandonei a analogia, mas ela não foi inútil, pois a partir dele cheguei ao estudo mais pormenorizado do conceito de “crise orgânica” de Gramsci – que falta em Mandel em suas brilhantes páginas sobre as ondas longas. Na verdade, o conceito de Mandel, embora se deseje histórico, enreda nas mesmas contradições de Kondratiev (economista russo do começo do século XX), prefigurando nas tais “ondas longas” uma espécie de projeção geométrica dos ciclos curtos do capitalismo.
Para mim, em resumo, porque sei que o tema é cabeludo, as “ondas longas”, no fundo, elidiam o papel do acaso e da surpresa na história: menos que uma projeção geométrica de um ciclo aritmético, o capitalismo precisou enterrar 40 milhões de mortos na segunda guerra mundial para em seguida viver os tais dos “trinta anos gloriosos”. Mas passei a compreender e admirar o fundo oculto da empreitada de Mandel. Na verdade, o velho dirigente trotskista estava revisando o “programa de transição” de Trotsky, especialmente na assertiva de que as “forças produtivas pararam de crescer”. As ondas longas eram um caminho de refazer o caminho de Trotsky ao mesmo tempo em que o revisava. Carlos Nelson, às vezes cético ou mesmo prevendo o desfecho, gostava dessas espec ulações. Mais que o resultado, vale a viagem. Tenho a dizer, enfim, que foi o tempo inteiro um orientador de espírito livre.
Teria mais coisas a dizer. Outros dirão. Entrei em contacto com Carlos Nelson pela última vez em maio, dizendo que havia começado escrevendo uma resenha a propósito de seu último livro – De Rousseau a Gramsci (Boitempo, 2011) –, e o texto resultou em um escrito bem mais longo, tendo como objeto o que achava ser o âmago de seu projeto em filosofia política – a união dos conceitos de hegemonia e contrato. Carlos Nelson se interessou e disse que em breve entraria em contacto com as suas opiniões. Não escreveu, nem pedi retorno, ciente da doença. Hoje recebo a noticia do falecimento.
Gostaria de encerrar este pequeno depoimento notando que Carlos Nelson tem duas origens intelectuais indeléveis: a floração da geração de intelectuais baianos, de Caetano Veloso e Capinan, que participaram de um momento ímpar da renovação das artes e da política em Salvador, e principalmente dos intelectuais do PCB que aproveitam as lufadas de ar fresco que arejaram o velho e extinto partido depois da famosa e maltratada Declaração de Março de 1958, que pela primeira vez, na esquerda brasileira, buscou conjugar socialismo e democracia. Carlos Nelson não morre, continua vivo na ação dos que têm como projeto combinar socialismo e democracia.
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