Existem “deuses bolsonaristas”? A quinta edição do jornal “Em Tempo”, editado pela ADUFPB, faz uma análise provocativa das relações do governo Bolsonaro com segmentos religiosos que buscam o domínio das esferas de poder.
O texto escrito pelo professor do Departamento de História da UFPB, Elio Flores, denuncia a recente indicação do ministro “terrivelmente evangélico”, prometido por Bolsonaro desde 2018, para o Supremo Tribunal Federal (STF).
“Está aí, tá okei, um ‘deus bolsonarista’ muito bem colocado na basílica presidencial: governa, vigia os costumes, desgoverna os sexos e, ainda que goste de um contracheque público, assim se afirma ‘contra a idolatria do Estado'”, provoca Elio Flores.
A quinta edição do “Em Tempo” começa a circular nesta quarta-feira (21) nas redes sociais do sindicato e está disponível no nosso site.
Leia abaixo o texto na íntegra ou clique aqui para fazer o download em formato PDF.
Existem “deuses bolsonaristas”?
Elio Flores
Professor do Departamento de História da UFPB
Falaste na verdade num tom cheio de soberba como convém aos lacaios dos deuses! São jovens, jovem é o poder que exercem e julgam habitar um castelo inacessível à dor. (…) Por nada deste mundo eu trocaria a minha dor pelo teu servilismo. Prefiro ver-me sujeitado a esta dura rocha a ser o dócil mensageiro do poder de um tirano. Se te posso falar com franqueza, dir-te-ei que odeio todos os deuses; devem-me favores e pagam-me com iniquidade.
Ésquilo, Prometeu Acorrentado. Séc. V a.C.
No dia 15 de abril de 1841, portanto, há 180 anos, um jovem prussiano de 23 anos defendeu, na Universidade de Jena, tese de doutoramento em filosofia que havia dado por título Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. O autor da tese se autodeclarou assim: Karl Heinrich Marx.
No prefácio da tese, o autor, que ainda não era famoso, já se coloca ao lado da boa “filosofia da autoconsciência” de Epicuro: “Ímpio não é quem elimina os deuses aceitos pela maioria, e sim quem aplica aos deuses as opiniões da maioria”.
Qual a relação da tese do jovem Karl Heinrich com a pergunta do título do artigo Existem “deuses bolsonaristas”? O abençoado leitor deve avançar mais um pouquinho antes de alguma conclusão apressada.
Nesse mês de julho de 2021, o inominável que senta na primeira cadeira da República anunciou o que já vinha ameaçando à sociedade brasileira desde a sua unção pelas urnas eletrônicas, naqueles muito distantes domingos (primeiro e segundo turnos) de outubro de 2018. O ungido miliciano nomeará para o Supremo Tribunal Federal um ministro “terrivelmente evangélico”. Governista desde a primeira ceia, aquele que será nomeado tem virtudes genebrinas, do tipo “é deus que fala”: advogado muito bem formado, otimamente pós-graduado, competente pastor presbiteriano, exala aquela pax calvinista da “vigília da alma”. Os presbíteros que decididamente se amam e se autodeclaram “deuses bolsonaristas” não costumam ser confundidos com almas sonolentas – a propósito, no momento em que escrevo, o Ministério da Educação e a CAPES estão presbiterianos até os dentes.
Esse núcleo jurídico consagra uma das constelações dos “deuses bolsonaristas”. Está aí, tá okei, um “deus bolsonarista” muito bem colocado na basílica presidencial: governa, vigia os costumes, desgoverna os sexos e, ainda que goste de um contracheque público, assim se afirma “contra a idolatria do Estado”.
Quais seriam os outros “deuses bolsonaristas”?
Outra constelação talvez seja a mais conhecida desde os tempos do dilúvio: os pastores e bispos pentecostais e neopentecostais que inundam horários da televisão aberta com uma profusão de “milagres espirituais”, curando doenças básicas (espinhela caída, por exemplo) até o fato pandêmico do milênio (covid-19). Esses pastores midiáticos, para lá de in/competentes na discursividade bíblica, são também pródigos em “milagres materiais”, ao jurarem, de olhos lânguidos e mãos altíssimas, que podem tornar rico – com dólares, euros, carros de luxo, mansões em Miami Beach, apês de estilo vitoriano em Nova Iorque – qualquer um que se disponha a lhes fornecer o dízimo sagrado.
Não por coincidência, o genocida de corpos e almas vomitou a news – nomear um ministro “terrivelmente evangélico” − numa famosa rádio do Rio Grande do Sul, que, desde a segunda metade do século XX, havia se tornado orgulho dos gaúchos. Neste velhíssimo século XXI, a referida rádio é propriedade de um poderoso senhor evangélico, teólogo da prosperidade, que só usa cuecas fabricadas pela burguesia cubana radicada em Miami e que se realizou espiritualmente como o maior acionista dos céus do Brasil – e de outros céus tropicais. Já existe excelente literatura sobre esse conspícuo e notável – nem um pouco calvinista − “sócio de deus” e ardentemente desejoso do “império universal”.
Muitos padres, bispos, cardeais e freiras que professam o catolicismo apostólico romano parecem constituir um núcleo enferrujado de apoio ao poder bolsonarista, ainda que com larga experiência na defesa da ditadura e em excomungar bandeiras vermelhas, foices e martelos. Uma das expressões desse segmento ideológico chegou a fazer da Paraíba uma catedral ratzingeriana, ao discursar, em manifestações públicas que ele mesmo promoveu, em defesa desse “deus ultrabolsonarista”, menos dizimista e mais latinamente vanitas. A crítica especializada cunhou uma expressão pertinente para os demasiadamente humanos desse rebanho: catolibãs.
Pode-se concluir, portanto, que os “deuses bolsonaristas” são múltiplos, multiplicáveis e multiplicadores. Numa definição muito prática da internet, que nomeia, por derivação, a principal empresa capitalista do nosso século: os “deuses bolsonaristas” são googol, isto é, o dígito 1 seguido de 100 zeros.
Voltemos, para finalizar, à tese do nosso amigo Heinrich e às filosofias da autoconsciência – como também a um dos seus autores mais criativos. Epicuro censurou todas as criaturas humanas que se faziam crentes da necessidade do céu – e, por consequência, dos adivinhadores dos corpos celestes –, que necessitam de religião e de um messias para viver. Neste artigo, formulamos uma hipótese afirmativa (os “deuses bolsonaristas” existem), porque ela permite aos sobreviventes de um genocídio sem precedentes na história do Brasil que eles caminhem pela dignidade da ataraxia – oráculos, não me perturbem! −, na confiança neles mesmos, sem perplexidade. Não temos o direito de ficar perplexos com Bolsonaro e os bolsonaristas. Eles sempre afirmaram como iriam agir no exercício do biopoder. Os mais de 530 mil corpos e almas dos nossos parentes, amigos, companheiros e adversários de viagem foram sacrificados no Olimpo desses deuses degradados e impiedosos.
Fonte: Ascom ADUFPB