Complexo do Alemão: subo e nunca chego ao céu
Jaldes Reis de Meneses
Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB).
São Carlos, Morro, Borel/Subo e nunca chego ao céu.
(Sérgio Sampaio, in Cruel, de preferência na voz de Luiz Melodia acompanhado pelos meninos da Escola de Música da rocinha: http://www.youtube.com/watch?v=thtieD7Aeo8 e a cuja beleza dedico, modestamente, este artigo)
À bem da verdade, logo de começo o mais relevante, desmentindo uma mentira, de tanto repetida, tornada enganoso senso comum: o Estado brasileiro sempre presente nas favelas, principalmente as do Rio de Janeiro (quando nada, importante reduto de massa eleitoral). Quem não está na favela somos nós os milhões que acompanhamos os acontecimentos através da TV a cabo. Dilma Rousseff e Sérgio Cabral, por exemplo, subiram o morro e fizeram comícios eleitorais no indigitado complexo do Alemão. As obras do PAC estavam a pleno vapor na favela, basta ver a adiantada construção de um autêntico teleférico de inspiração colombiana, meio de transporte destinado a cumprir uma função estratégica de vigilância, isto é, uma espécie de Panóptico de inspiração benthamiana (quem não entender a minha referência, sugiro a leitura de Vigiar e punir, clássico de M. Foucault).
Dessa maneira, invocando a formulação de Clausewitz, a guerra contra o tráfico é a continuação da política por outros meios. Alguma coisa que precisa ser investigada não deu certo na implantação macia das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), resultando na ordem de comando do tráfico em atacar, de pronta respondida em força compacta pelo Estado. Contudo, há que reconhecer que os novos acontecimentos doravante vão mudar qualitativamente a mesma presença estatal, militarizando por mui to tempo (quem sabe até a copa do mundo e as olimpíadas) a mesma presença estatal. Se o Estado pretendia ocupar a favela da mesma maneira desconcentrada que ocupa Copacabana ou Cabo Branco, em definitivo o projeto gorou.
Aviso que vou passar por alguns momentos do registro real ao simbólico. Nas primeiras páginas de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, duas sinhazinhas, Natividade e Perpétua sobem o Morro do Castelo em busca de consultar uma mãe de santo visando elucidar agruras sentimentais e familiares. Supérfluo, mas de todo modo naquele tempo a aventura de subir o morro limitava-se ao percalço de sujar as botas em um terreno íngreme. Imaginem se passava pela cabeça de Machado de Assis o perigo de uma bala perdida! Resultado: o cotidiano da favela não circula na zona sul, opera em circuito fechado.
Para todos nós brasileiros distantes do dia-a-dia de cão das favelas do Rio de Janeiro – a não ser que moremos, é óbvio, em alguma favela –, não há como escapar dos simbolismos da imagem na apreciação do tema dos acontecimentos do final de semana no chamado complexo do Alemão. São simbolismos que aproximam ao mesmo tempo em que distanciam, esclarecem e enganam. Explico-me: na ausência do corpo-a-corpo do real, as imagens podem se transformar na seiva dos estereótipos, dos preconceitos, dos mitos, seja de admiração ou de asco.
Em tempos disseminação popular do consumo de TV a cabo, tivemos a primeira cobertura direta, ao vivo e online, de uma guerra urbana brasileira. Sem trocadilho: audiência em pico máximo. Nem mais o celulóide, vale dizer, Cidade de deus (Fernando Meireles) e Tropa de elite I e II (José Padilha) – as referências coletivas do brasileiro em assuntos de guerra urbana.
Quase nenhum de nós é ou pensa como general ou político, aprendemos a questão da guerra através da ficção e vemos os acontecimentos reais pelas lentes da ficção. Compomos a massa bovina chamada opinião pública. Agora, a partir da guerra urbana, em vez de mera verossimilhança, paradoxalmente, a realidade é produzida pelo mesmo corte estético hiperealista da ficção.
São-nos servidas à disposição de um deleite, certamente tenso, imagens de alto quilate, em grau raras vezes deixado filmar pelo exército de Israel na Faixa de Gaza, nem pelo exército americano no Iraque ou no Afeganistão. A sensação é a mesma de um vídeo game, o treino básico em perigo de nossos adolescentes: enquanto nosso coração bate mais forte, as câmeras ágeis e tremulas cumprem o papel de emocionar, seguindo os corajosos repórteres em vielas, no meio do tiroteio. Para além da importância indiscutível do fato em si, este um dos motivos do interesse mundial acontecimentos do Rio de Janeiro. Em suma, enquanto há abundância de imagens, falta explicação.
Mas a fita não chegou ao clímax. O roteiro da vida desobedeceu ao cinema. Canudos não se rendeu, mas o tráfico, realista e covarde, escapou. Deixou de haver a batalha final, o banho de sangue – o enfretamento entre os duzentos bandidos acantonados no alto do morro e os mais de um mil e oitocentos militares das forças conjuntas estaduais e federais. Os bandidos se escafederam feito ratos pelo ralo do esgoto (versão controversa sujeita a desmentidos, pelo que leio na internet, por quem conhece a topografia do complexo do alemão), senão estão sendo caçados numa vistoria em pente fino à lá Stalingrado. Fala-se, em reunião dos secretários de segurança, num retorno ancestral ao nordeste.
De todo modo, o fato é que, na tarde de sábado (28/11/10), os noticiários reverberavam uma mediação diplomática intermediada por um “negociador social” da ONG Afro-Reggae. Em vez de rendição, da parte dos traficantes, a negociação parece ter tido o objetivo de ganhar tampo para uma fuga. Enfim, as notícias são sobejamente conhecidas, chega de repetir. Contudo, cabe uma reflexão. Melhor uma anti-cinematográfica batalha de Itararé (o enfrentamento que não houve entre as tropas do Rio Grande do Sul e de São Paulo na revolução de 30) do que o morticínio de Canudos. Escapamos de ver as sobras de quatro apenas, “um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (parafraseando o celebre desfecho de Os sertões, de Euclides da Cunha).
Longe de mim a tentação de glamorizar traficantes cruéis, de reeditar as batidas teorias do “banditismo social” ou do “protesto inconsciente”, seja na figura de Lampião no nordeste brasileiro ou da máfia siciliana na Itália meridional. Traficantes não foram banidos da terra pelo latifúndio.
Porém, deve haver na comparação entre o velho “banditismo social” e o novo “insocial”, pela diferença, um fio da meada esclarecedor: tanto o Cangaço como a primeira máfia compunham o cenário longínquo de um mundo rural, eram móveis e tinham como espaço de atuação uma região. Por seu turno, a atividade do tráfico de drogas opera em circuito fechado, ambiente de segregação que é. Nos termos do belo livro do Mike Davis, existe um “planeta favela”, a que no Rio de Janeiro atendem pelo nome (sociologicamente errado, vale dizer, mas de que vale a sociologia nessas horas?) de comunidade.
Por tudo isso, o privilegiado cenário segregado da favela configura hoje uma força de trabalho sem lugar no mercado formal, jovens tornados incapacitados até de compor a da força de reserva, mas moídos numa estranha atividade empresarial alternativa, que mimetiza pelo avesso o empresário “legal”. O ambiente da favela como estrutura de recrutamento de um trabalho armado desqualificado, sorvedouro da produção de uma riqueza e de uma mercadoria de valor de uso orgiástico. O destino do novo “banditismo ‘insocial’” sempre é trágico: também consomem a mercadoria que traficam, quando não morrem de bala, cedo são consumidos pelo modo de vida.
Se alguma coisa está chegando ao fim, não é o tráfico nem o consumo de drogas, mas a fase de acumulação primitiva desta atividade econômica. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro tem constatado uma decadência na economia política do tráfico de drogas, na forma como essa dispendiosa atividade opera, em termos de capital e circulação da mercadoria. Por conseguinte, encontramo-nos nos limiar de uma reengenharia do tráfico de drogas, certamente gerando uma atividade concentrada no comando, mas flexível na ponta, de entrega delivery (http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1307 ).
O México e a Colômbia, de alguma maneira fizeram cada qual à sua maneira, a reengenharia do tráfico de drogas. No Brasil, parece que a tendência principal do tráfico é compor mais um dos serviços do cardápio das chamadas milícias, fundindo ainda mais em longo prazo tráfico, polícia e política. Não me peça soluções, tenho a oferecer somente a arma da crítica.
Jaldes Reis de Meneses*
São Carlos, Morro, Borel/Subo e nunca chego ao céu.
(Sérgio Sampaio, in Cruel, de preferência na voz de Luiz Melodia acompanhado pelos meninos da Escola de Música da rocinha: http://www.youtube.com/watch?v=thtieD7Aeo8 e a cuja beleza dedico, modestamente, este artigo)
À bem da verdade, logo de começo o mais relevante, desmentindo uma mentira, de tanto repetida, tornada enganoso senso comum: o Estado brasileiro sempre presente nas favelas, principalmente as do Rio de Janeiro (quando nada, importante reduto de massa eleitoral). Quem não está na favela somos nós os milhões que acompanhamos os acontecimentos através da TV a cabo. Dilma Rousseff e Sérgio Cabral, por exemplo, subiram o morro e fizeram comícios eleitorais no indigitado complexo do Alemão. As obras do PAC estavam a pleno vapor na favela, basta ver a adiantada construção de um autêntico teleférico de inspiração colombiana, meio de transporte destinado a cumprir uma função estratégica de vigilância, isto é, uma espécie de Panóptico de inspiração benthamiana (quem não entender a minha referência, sugiro a leitura de Vigiar e punir, clássico de M. Foucault).
Dessa maneira, invocando a formulação de Clausewitz, a guerra contra o tráfico é a continuação da política por outros meios. Alguma coisa que precisa ser investigada não deu certo na implantação macia das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), resultando na ordem de comando do tráfico em atacar, de pronta respondida em força compacta pelo Estado. Contudo, há que reconhecer que os novos acontecimentos doravante vão mudar qualitativamente a mesma presença estatal, militarizando por mui to tempo (quem sabe até a copa do mundo e as olimpíadas) a mesma presença estatal. Se o Estado pretendia ocupar a favela da mesma maneira desconcentrada que ocupa Copacabana ou Cabo Branco, em definitivo o projeto gorou.
Aviso que vou passar por alguns momentos do registro real ao simbólico. Nas primeiras páginas de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, duas sinhazinhas, Natividade e Perpétua sobem o Morro do Castelo em busca de consultar uma mãe de santo visando elucidar agruras sentimentais e familiares. Supérfluo, mas de todo modo naquele tempo a aventura de subir o morro limitava-se ao percalço de sujar as botas em um terreno íngreme. Imaginem se passava pela cabeça de Machado de Assis o perigo de uma bala perdida! Resultado: o cotidiano da favela não circula na zona sul, opera em circuito fechado.
Para todos nós brasileiros distantes do dia-a-dia de cão das favelas do Rio de Janeiro – a não ser que moremos, é óbvio, em alguma favela –, não há como escapar dos simbolismos da imagem na apreciação do tema dos acontecimentos do final de semana no chamado complexo do Alemão. São simbolismos que aproximam ao mesmo tempo em que distanciam, esclarecem e enganam. Explico-me: na ausência do corpo-a-corpo do real, as imagens podem se transformar na seiva dos estereótipos, dos preconceitos, dos mitos, seja de admiração ou de asco.
Em tempos disseminação popular do consumo de TV a cabo, tivemos a primeira cobertura direta, ao vivo e online, de uma guerra urbana brasileira. Sem trocadilho: audiência em pico máximo. Nem mais o celulóide, vale dizer, Cidade de deus (Fernando Meireles) e Tropa de elite I e II (José Padilha) – as referências coletivas do brasileiro em assuntos de guerra urbana.
Quase nenhum de nós é ou pensa como general ou político, aprendemos a questão da guerra através da ficção e vemos os acontecimentos reais pelas lentes da ficção. Compomos a massa bovina chamada opinião pública. Agora, a partir da guerra urbana, em vez de mera verossimilhança, paradoxalmente, a realidade é produzida pelo mesmo corte estético hiperealista da ficção.
São-nos servidas à disposição de um deleite, certamente tenso, imagens de alto quilate, em grau raras vezes deixado filmar pelo exército de Israel na Faixa de Gaza, nem pelo exército americano no Iraque ou no Afeganistão. A sensação é a mesma de um vídeo game, o treino básico em perigo de nossos adolescentes: enquanto nosso coração bate mais forte, as câmeras ágeis e tremulas cumprem o papel de emocionar, seguindo os corajosos repórteres em vielas, no meio do tiroteio. Para além da importância indiscutível do fato em si, este um dos motivos do interesse mundial acontecimentos do Rio de Janeiro. Em suma, enquanto há abundância de imagens, falta explicação.
Mas a fita não chegou ao clímax. O roteiro da vida desobedeceu ao cinema. Canudos não se rendeu, mas o tráfico, realista e covarde, escapou. Deixou de haver a batalha final, o banho de sangue – o enfretamento entre os duzentos bandidos acantonados no alto do morro e os mais de um mil e oitocentos militares das forças conjuntas estaduais e federais. Os bandidos se escafederam feito ratos pelo ralo do esgoto (versão controversa sujeita a desmentidos, pelo que leio na internet, por quem conhece a topografia do complexo do alemão), senão estão sendo caçados numa vistoria em pente fino à lá Stalingrado. Fala-se, em reunião dos secretários de segurança, num retorno ancestral ao nordeste.
De todo modo, o fato é que, na tarde de sábado (28/11/10), os noticiários reverberavam uma mediação diplomática intermediada por um “negociador social” da ONG Afro-Reggae. Em vez de rendição, da parte dos traficantes, a negociação parece ter tido o objetivo de ganhar tampo para uma fuga. Enfim, as notícias são sobejamente conhecidas, chega de repetir. Contudo, cabe uma reflexão. Melhor uma anti-cinematográfica batalha de Itararé (o enfrentamento que não houve entre as tropas do Rio Grande do Sul e de São Paulo na revolução de 30) do que o morticínio de Canudos. Escapamos de ver as sobras de quatro apenas, “um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (parafraseando o celebre desfecho de Os sertões, de Euclides da Cunha).
Longe de mim a tentação de glamorizar traficantes cruéis, de reeditar as batidas teorias do “banditismo social” ou do “protesto inconsciente”, seja na figura de Lampião no nordeste brasileiro ou da máfia siciliana na Itália meridional. Traficantes não foram banidos da terra pelo latifúndio.
Porém, deve haver na comparação entre o velho “banditismo social” e o novo “insocial”, pela diferença, um fio da meada esclarecedor: tanto o Cangaço como a primeira máfia compunham o cenário longínquo de um mundo rural, eram móveis e tinham como espaço de atuação uma região. Por seu turno, a atividade do tráfico de drogas opera em circuito fechado, ambiente de segregação que é. Nos termos do belo livro do Mike Davis, existe um “planeta favela”, a que no Rio de Janeiro atendem pelo nome (sociologicamente errado, vale dizer, mas de que vale a sociologia nessas horas?) de comunidade.
Por tudo isso, o privilegiado cenário segregado da favela configura hoje uma força de trabalho sem lugar no mercado formal, jovens tornados incapacitados até de compor a da força de reserva, mas moídos numa estranha atividade empresarial alternativa, que mimetiza pelo avesso o empresário “legal”. O ambiente da favela como estrutura de recrutamento de um trabalho armado desqualificado, sorvedouro da produção de uma riqueza e de uma mercadoria de valor de uso orgiástico. O destino do novo “banditismo ‘insocial’” sempre é trágico: também consomem a mercadoria que traficam, quando não morrem de bala, cedo são consumidos pelo modo de vida.
Se alguma coisa está chegando ao fim, não é o tráfico nem o consumo de drogas, mas a fase de acumulação primitiva desta atividade econômica. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro tem constatado uma decadência na economia política do tráfico de drogas, na forma como essa dispendiosa atividade opera, em termos de capital e circulação da mercadoria. Por conseguinte, encontramo-nos nos limiar de uma reengenharia do tráfico de drogas, certamente gerando uma atividade concentrada no comando, mas flexível na ponta, de entrega delivery (http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1307 ).
O México e a Colômbia, de alguma maneira fizeram cada qual à sua maneira, a reengenharia do tráfico de drogas. No Brasil, parece que a tendência principal do tráfico é compor mais um dos serviços do cardápio das chamadas milícias, fundindo ainda mais em longo prazo tráfico, polícia e política. Não me peça soluções, tenho a oferecer somente a arma da crítica.
*Professor do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB)