Às vésperas do aniversário de 20 anos do ataque às Torres Gêmeas, o professor de História da UFPB, Jaldes Meneses, publica no jornal Em Tempo, editado pela ADUFPB, um artigo em que analisa a conjuntura mundial após a decisão dos Estados Unidos de retirar suas tropas do Afeganistão.
O atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro 2001, e a consequente caça à Al-Qaeda foi a justificativa dada pelo governo norte-americano para a invasão do território afegão. A saída das tropas, 20 anos depois, seguida da tomada do país pelo Talibã “destampou uma grave ferida narcísica no autoconfiante ‘poder americano'”, avalia Jaldes Meneses no artigo.
Segundo ele, além da humilhação no Afeganistão, a conjuntura mundial revela outros três fatores que abalam a dominação geopolítica dos Estados Unidos: a continuidade dos efeitos da crise de 2008, a ascensão da China e a pandemia do coronavírus. O professor Jaldes Meneses avalia ainda que os acontecimentos em Cabul “denotam um processo de reconfiguração geopolítica de alto a baixo na Ásia Central e no Oriente Médio, uma pedra no lago com ressonância em todo o planeta”.
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A guerra do fim da história no fim do mundo
Jaldes Meneses
Professor Titular do Departamento de História da UFPB
Thousands were watching, no one saw a thing.
Bob Dylan, Murder Most FoulOnde o cujo faz a curva/ O cu do mundo, esse nosso sítio.
Caetano Veloso, O Cu do Mundo
Em 1989, sob o impacto dos acontecimentos da queda do Muro de Berlim, um obscuro pesquisador sênior do Departamento de Estado dos Estados Unidos, Francis Fukuyama, neoconservador de carteirinha (depois ele procurou outras sendas), decretou – em palestra na Universidade de Chicago – e publicou – em The National Interest – o “fim da história”. O cientista político estava inspirado em textos há décadas entregues à benfazeja crítica roedora de ratos especializados nas finas antiquarias de Hegel, Kójeve e Weber. Fukuyama afirmava que a democracia liberal culminava o desenvolvimento político da história humana. O “fim do comunismo” não significava o “fim de uma ideologia”, mas o fim da imensidão da “história enquanto tal”. Era aparentemente uma teoria celebratória. Nada mais falso.
Poucos perceberam outra camada, de lúgubre incerteza, em sua teoria. Havia nela um subtexto de universalismo, paradoxalmente relativo e limitado, a ser levado em consideração: a vitória liberal sobre o socialismo na versão soviética resolvia a questão da história. Contudo, persistia a questão da margem, o estranhamento no reconhecimento do outro, a escumalha habitante no cu mundo, os povos não integrados à soberba cultura política histórica dominante no Ocidente. Rousseau escreveu que Maquiavel era um ironista (ou um sátiro) – fingindo dar lições à prática política dos reis absolutistas, deu-as, grandes, aos povos. Sempre desconfiei – não tenho certeza – que Fukuyama é mais um ironista. De todo modo, se não foi irônica a sua intenção, uma ironista tem sido a história em si.
Logo em seguida ao “fim da história”, os Estados Unidos empreenderam – para surpresa de muitos e apoio subserviente do Conselho de Segurança da ONU – a primeira Guerra do Iraque, visando a destronar o poder regional de Saddam Hussein, um ex-aliado na Guerra do Irã. Afora o cru teatro de guerra no deserto, aquela guerra foi vendida, na propaganda dos EUA, como uma guerra limpa, asséptica, de supremacia tecnológica absoluta, combinando em afinidade eletiva com a teoria do “fim da história”. Mas ficou a pergunta: por que Saddam Hussein não foi destronado, embora as tropas aliadas estivessem às portas de Bagdá? Um novo e surpreendente personagem entrou em cena: o povo xiita do sul do Iraque. Massacraram os xiitas sem pena. Para frustação do gal. Schwarzkopf, ávido por comemorar o grande feito militar de sua carreira, George Bush pai suspendeu a ofensiva final. Saddam Hussein sobreviveu dez anos. A estratégia virou a chave: do “fim da história” ao “choque de civilizações”, cuja senha intelectual foi o célebre artigo publicado por outro intelectual orgânico, Samuel Huntington, em 1993.
O choque de civilizações se tornou verossimilhante no ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Escreveu Eric Hobsbawm, anunciando as trombetas de um “novo século”: “Uma drástica e inegável cesura na história do mundo. Provavelmente nenhum outro acontecimento inesperado da história do mundo tenha sido sentido diretamente por maior número de seres humanos”. O próprio Fukuyama clarificou a questão da “margem”, dos “povos sem história”, formulando – ele e uma plêiade de outros autores – a questão da existência dos chamados “Estados falidos”, em que avultavam três países: Haiti, Somália e… Afeganistão.
Os 20 anos de guerra do Afeganistão – a mais longa intervenção externa dos Estados Unidos no “fim do mundo” –, bem como os humilhantes episódios recentes de desmobilização das tropas de ocupação em Cabul, cumpriram-se como a guerra do “fim da história” no “fim do mundo”. A deduzir do semblante desalentado do presidente Joe Biden em recentes aparições públicas, percebe-se que o acontecimento destampou uma grave ferida narcísica no autoconfiante “poder americano”.
No passado, doutas autoridades – a última vez na crise econômica de 2008 – previram a decadência do Império. Não aconteceu. Agora, afora a humilhação do Afeganistão, a conjuntura impõe os desafios combinados dos três grandes cavaleiros do apocalipse: 1) a continuidade dos efeitos da crise de 2008; 2) a ascensão da China e; 3) a pandemia do coronavírus. De todo modo, se o império sobreviver, a dominação geopolítica de espectro total, na escala de todo o planeta, dos mares do Atlântico até o heartland eurasiano (região estratégica na qual o Afeganistão se insere), hoje predominante, parece, finalmente, entrar numa zona irremediável de sombras.
Mais uma vez, reincidindo os fantasmas da guerra do Vietnã, a soberba do poder foi derrotada por uma heroica e assimétrica guerrinha de camponeses, Vietcongues e Talibãs. Qualquer que seja o desfecho da contenda (governo nacional-teocrático dos Talibãs e forças aliadas ou guerra civil descontrolada), os acontecimentos em Cabul – milhares de pessoas desesperadas no aeroporto, em busca de um lugar no piso da balsa de salvação em um avião superlotado – já são extraordinários. Denotam um processo de reconfiguração geopolítica de alto a baixo na Ásia Central e no Oriente Médio, uma pedra no lago com ressonâncias em todo o planeta.
Ano passado, no pleno curso da pandemia do coronavírus, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz retomou a periodização de Hobsbawm e, a partir dela, enunciou uma retificação. Depois do fim do velho século e começo do novo, enunciados por Hobsbawm (URSS e Torres Gêmeas), ela pincela um terceiro recomeço neste afresco: “O século XXI só começa depois da pandemia”. Conforme a intelectual, a autoimagem do século XX, via-de-regra, tem sido pintada como a de “um mundo sem barreiras que funciona em rede” – um tempo de alta tecnologia… mas… de repente… um microrganismo… conseguiu parar grandes impérios como os Estados Unidos, a Europa, a China e até pequenas aldeias. Em apoio a outras considerações de Hobsbawm, desta feita sobre o “longo século XIX”, Lilia afirma que o século retrasado (XIX) “pensou que todo tipo de invento, por si só, libertaria as pessoas”. Por isso o século retrasado só acaba no trauma das carnificinas da Primeira Guerra Mundial. O lúgubre da guerra fez picadinho da principal representação do século XIX sobre si mesmo – o ideal de progresso burguês.
Cabe aproveitar o insight de Lilia e apensar questões. Curioso, o curto vídeo da antropóloga – talvez por pressão de tempo ou pela tirania da montagem –, infelizmente, deixa de aprofundar por que a autoimagem do mundo contemporâneo como “um mundo sem barreiras que funciona em rede” pouco ou nada se diferencia da autoimagem otimista do século XIX. Essa autoimagem é insistentemente igual, porque se baseia no parâmetro exclusivo de evolução da técnica. No fundo, a autoimagem descrita pela antropóloga, menos que a do esquecido século XX, de fato reflete a dos recentes anos 1990, ou seja, os tempos áureos das díspares, mas convergentes, escolas da “globalização”, do “neoliberalismo”, do “clintonismo”, do “obamismo”, do “tucanismo”, do “neoconservadorismo” liberal, da “terceira via” de Tony Blair e Anthony Giddens, da “sociedade em redes” de Manuel Castells, do “pós-moderno” etc. Não é à toa que os anos 1990 fizeram pintar, pela segunda vez, como na aurora do século XX: uma sorridente e extemporânea Belle Époque.
Imagens não caem de pés de maçã por gravidade. Significam construção. Ambas as autoimagens dominantes, tanto do “longo século XIX” como do “novo século XXI”, estão atadas às bolas de ferro celebratórias de róseos determinismos tecnológicos, calços de teorias como o “fim da história” e o medo do “choque das civilizações”. O fundo da narrativa ideológica é o elogio de um salto de evolução capitalista cega – portanto, dirigida pelo mercado e um Estado guarda-noturno spenceriano –, conduzindo a uma evolução não planejada e planificada das forças produtivas. No século XIX, a força da imaginação vinha do trem serpenteando estradas; na contemporaneidade, até recentemente, a imaginação dominante vinha das trocas “na aldeia global das sociedades em redes”. Tudo róseo e falso. “Milhares estavam assistindo e ninguém viu nada”, cantou na mosca o genial bardo Bob Dylan.