A necessidade de se pensar o feminismo e a luta das mulheres negras e das pessoas trans foi o centro do debate no III Seminário Nacional de Mulheres, realizado na tarde da última quinta-feira (24), em Pelotas (RS), como parte do Seminário Nacional Integrado do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe, Questões Étnico-raciais, Gênero e Diversidade Sexual (GTPCGEDS). O tema foi abordado por Adriana Sales, dirigente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), e Meire Reis, professora da rede estadual da Bahia.
Enquanto o Brasil lidera o ranking mundial de acessos a sites eróticos com cenas de sexo protagonizadas por travestis e trans, é, também, uma das nações que mais mata pessoas transexuais e travestis, alertou Adriana, no início de sua fala. Só no primeiro semestre deste ano, 118 já foram assassinadas.
Ela destacou também o fato de que, embora 200 pessoas trans terem conseguido romper a barreira da exclusão e efetuado inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), as instituições de ensino ainda não estão preparadas para receber, incluir e formar essa parcela da sociedade. Para Adriana, a ocupação de espaços de conhecimento por travestis e transexuais é uma atitude política. “Não nos sentimos contempladas por uma academia que tenta falar pela gente. A escola e a universidade brasileira não dão conta da diversidade. Esses espaços ainda são para brancos, machos, burgueses, e não para a maioria da população brasileira”, avalia.
Exemplo citado é a falta de disciplinas que discutam gênero e sexualidade nesses espaços, de forma que poucos cursos de graduação, em todo o Brasil, têm grades curriculares que contemplam tais assuntos. E, mesmo em cursos onde o debate está presente, Adriana salienta que há a preponderância de concepções feministas que não reconhecem travestis e transexuais como mulheres.
Na concepção da representante da Antra, é preciso firmar a universidade pública como lugar de produção de um conhecimento calcado nas demandas sociais. “A universidade se quer reconhece a nossa existência trans. Temos de pensar para quem produzimos ciência e qual projeto de sociedade queremos”, propõe.
Defendendo um feminismo que agregue ao invés de dividir, ela lança uma reflexão sobre a situação social reservada às travestis e trans. “Eu não represento 1% da minha população, pois sou branca, tenho uma família ‘estruturada’, estou na universidade. A maioria está repousando agora para ir às ruas de noite”, diz, referindo-se à prostituição como uma das únicas maneiras, para muitos travestis e transexuais, de sobrevivência, uma vez que o setor privado dificilmente as emprega. Quando mesmo atos banais do cotidiano, como o acesso a banheiros, é vetado, ela diz ser necessário, muitas vezes, fazer barulho e resistir.
E se a realidade é assim, em muito contribui, explica Adriana, a falta de políticas públicas que acolham essa população. “Estamos em guerra, porque minha população está sendo dizimada no território brasileiro”, concluiu.
Vênus de Milo
Jornais nas primeiras décadas do século XX já atestavam: o modelo universal de beleza feminina contempla cabelos loiros, olhos azuis, altura em torno de 1,70, dentre outras características um tanto específicas. Seriam essas mulheres as “Vênus de Milos”, também consideradas, em textos da época, as melhores mães, já que esse fenótipo denotaria maior gentileza e cuidado para com os filhos.
Não é de se espantar, então, que, enquanto o movimento feminista branco mobilizava-se por direitos como o de votar ou de receber herança, as mulheres negras gritavam por algo anterior: o direito a serem reconhecidas como seres humanos e como mulheres.
Meire Reis trouxe essas provocações para lembrar o quão esquecidas pelo próprio movimento feminista foram as mulheres negras, muitas vezes tendo de lutar pelo mínimo necessário à sobrevivência. Dessa forma, “mulher” não é categoria universal, uma vez que há um abismo racial ainda hoje predominante.
“Aquela feminista que diz ‘precisamos lutar por melhores qualidades de vida’, não incorpora as mulheres negras, que estão sobrevivendo em condições nas quais em que nem suas condições básicas de vida estão garantidas. Muitas vezes, universalizar desconhece os contextos e a realidade. A classe nos unifica, mas o gênero e a raça ainda nos divide”, disse.
Ao mesmo tempo, há um respiro de esperança. Motivadora do empoderamento crespo na Bahia, Meire conta que tem entrado em salas de aula e visto 80, 90 e até 100% de alunas adolescentes que não mais alisam os cabelos. Esse fenômeno, diz ela, era raro há 10 ou 15 anos.
“Quando as mulheres negras avançam, toda a sociedade avança. Não existe um único momento do meu dia em que eu não esteja lutando contra o racismo. Nós estamos disputando poder, e essa disputa é desigual”, conclui a professora e militante do movimento feminista negro na Bahia.
Seminário Integrado do GTPCEGDS
De quinta (24) até sábado (27), ocorre no Auditório do Colégio Técnico João XXIII, o I Seminário Integrado do Grupo de Trabalho de Política de Classe para as Questões Étnico-raciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) do ANDES-SN. Nesta sexta, 25, será o momento do II Seminário de Diversidade Sexual, que traz a mesa “Políticas Públicas para a população LGBT e o combate a LGBTfobia nas Instituições de Ensino Superior”. Já no sábado (26), acontecerá o II Seminário de Reparação e Ações Afirmativas, com o debate “Por uma universidade pública e plural: a luta por direitos para a população negra, indígena e quilombola”.
*Texto: Bruna Homrich – com edição do ANDES-SN
Fonte: Sedufsm SSind