Posicionamento sobre o Parecer do CNE que trata da Reorganização dos Calendários Escolares
e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de Pandemia da COVID-19
Em resposta à Consulta Pública destinada a colher subsídios e contribuições para deliberação do CNE sobre “Reorganização dos Calendários Escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de Pandemia da COVID-19”, as entidades nacionais abaixo assinadas tecem as seguintes considerações sobre o cenário atual, seus desafios e demandas.
Vivemos hoje, no país e no mundo, um estado de calamidade pública, que veio a exigir medidas excepcionais, visando à preservação da vida e o controle da disseminação do coronavírus, dentre as quais a suspensão de aulas e atividades acadêmicas. Como explicita o Edital de Chamamento, considerando a edição pelo Governo Federal, em 1º de abril de 2020, da Medida Provisória nº 934, que “estabelece normas excepcionais para o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública”, o CNE pretende emitir orientações em nível nacional a respeito da reorganização do calendário escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual.
Reconhecemos que, com este ato, o CNE toma uma iniciativa consoante sua função institucional, contribui com o debate e a mobilização de estados e municípios, assim como das comunidades escolares e universitárias, ainda que o faça de maneira parcimoniosa, ao propor por meio do documento “Proposta de parecer sobre reorganização dos calendários escolares e realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da COVID-19” algumas recomendações e delegar aos sistemas de ensino a tomada de decisões sobre a matéria.
O Governo Federal e o MEC, na contramão das exigências do momento, ignoram seu papel na coordenação das políticas educacionais em articulação com os entes federados e ratificam sua política de desmonte do setor educacional ao desconsiderar o PNE e não anunciar políticas e ações estratégicas para educação, setor que flagrantemente tem penalizado por cortes orçamentários e outras medidas restritivas, nos últimos anos.
Como entidades que congregam professores e pesquisadores do campo educacional, entendemos que as medidas de isolamento em curso, incluindo o fechamento de instituições educativas, são fundamentais para preservar vidas e diminuir a propagação do coronavírus, porém não suficientes para enfrentar e reduzir os impactos decorrentes desta grave pandemia, especialmente acirrados pelas enormes desigualdades socioeconômicas. Nesse sentido, o complexo cenário de pandemia da COVID-19 no país, que acentua as diferentes condições de vida da população, requer o desenvolvimento de ações coordenadas, em todas as áreas, envolvendo os poderes públicos de todos os entes federados e a sociedade civil na proposição e materialização de políticas que garantam o cumprimento da Constituição Federal e, portanto, os fundamentos do Estado Democrático de Direito: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Somente dessa forma será possível concretizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Art. 1º e 3º, CF). O que não pode ser reduzido ao direito a aprendizagens previstas na BNCC, como preconiza o documento de referência do CNE.
A educação, entendida como direito de todos e dever do Estado e da família, visando a garantia do pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Art. 205, CF) é vital para a concretização dos fundamentos e objetivos do Estado Democrático. Para que a educação de qualidade se efetive é necessário garantir o atendimento aos princípios de: igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; gestão democrática do ensino público, na forma da lei; garantia de padrão de qualidade; piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal (Art. 206, CF). Oportuno notar que no texto de referência do CNE apenas no ponto 2.11 Sobre Educação Indígena, do Campo e Quilombola, o respeito ao projeto pedagógico de cada escola/comunidade e a consulta aos conselhos aparecem de forma direta e vinculada ao processo de tomada de decisão.
Assim, consideramos que o estado de calamidade pública causado pela pandemia não pode ser utilizado como pretexto para ferir os princípios constitucionais e, em especial, o direito à educação de qualidade de todas as crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos brasileiros. Da mesma forma, a situação excepcional que a educação brasileira atravessa não pode ser motivo para afrontar o explicitado no artigo 32, § 4º, da LDB: ”O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais”, assim como no caput do Artigo 34: “A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola”.
Dessa forma, se dentre as preocupações do CNE foi realçada a garantia de “padrões básicos de qualidade para evitar o crescimento da desigualdade educacional no Brasil”, consideramos que a adoção de ações díspares – em muitos casos, efetivadas pela adoção de pacotes e softwares educacionais – visando a implementação da EAD, o uso de ferramentas digitais, o ensino remoto ou outras alternativas, sem a mediação direta de professores – os quais não foram preparados para tal – e com famílias sem condições de acessibilidade e de suporte ao processo educativo de crianças e jovens, não se conseguirá oportunizar o acesso ao ensino de qualidade. Tais ações acentuam as desigualdades digitais, sociais, culturais e econômicas dos estudantes brasileiros, acirrando as desiguais oportunidades de acesso ao conhecimento. Neste caso, a garantia de qualidade, no sentido das condições materiais para o desenvolvimento da formação, já poderia estar assegurada se a implementação do custo aluno qualidade fosse implementado, de forma permanente, evitando os experimentalismos remotos, que beiram a improvisação, propostos durante a suspensão das aulas.
Consideramos também que o ano letivo não obrigatoriamente precisa coincidir com o ano civil, principalmente em situações excepcionais como a que nos encontramos. A garantia de padrões de qualidade requer a construção de novas propostas pedagógicas, adequadas aos níveis, etapas e modalidades da educação nacional, com fundamentação e adequada definição dos objetivos pedagógicos, dentro do planejamento educacional da rede. Tal proposição deve considerar os complexos desafios resultantes da pandemia e seus desdobramentos, em articulação com as políticas educacionais democraticamente estabelecidas e com o projeto pedagógico das instituições, mediante envolvimento dos órgãos centrais dos sistemas de ensino, as suas instituições, os profissionais da educação e os estudantes.
Assim, é possível reorganizar os dias e horas escolares de modo a garantir o acesso educacional para todos, de forma presencial, assegurando que não haja discriminação devido às condições de vida dos estudantes. Entendemos que todas as dificuldades apontadas pelo CNE para a reposição presencial podem ser superadas, redimensionadas, tendo em vista o bem maior que é a saúde, a vida e o direito à educação. Nesse sentido, defendemos a reorganização dos calendários escolares assegurando a reposição as aulas e atividades escolares de modo presencial, logo que a pandemia esteja superada e possamos ter a necessária segurança sanitária. A reposição presencial das aulas e atividades acadêmicas suspensas é o melhor modo de assegurar o acesso à educação, em igualdade de condições a todos, ainda que para tal seja necessário que as atividades do ano letivo de 2020 sejam estendidas até 2021. Consideramos que a extensão do calendário escolar além do ano civil não significa um prejuízo, mas assegura um bem maior: o direito à Educação. Por isso defendemos que seja considerado o ciclo 2020-2021, sem a realização de quaisquer avaliações censitárias em 2020 ou no primeiro semestre de 2021.
O documento de referência sugere o envio de atividades típicas da escola às famílias, crianças e jovens em cada etapa educacional, desconsiderando que a realização de atividades não presenciais trará enormes prejuízos a uma parcela significativa de estudantes, cujos familiares não terão condições, por diversos fatores, de ofertar o apoio necessário para realização das atividades. Os sistemas e instituições de ensino não estão preparados para a adoção da EAD, pois não possuem expertise necessária para tal, nem os docentes têm formação adequada para o uso de ferramentas online, pois esta nunca foi uma exigência para a sua atuação. Ademais, o uso indiscriminado de aplicativos e aulas prontas, que não consideram as realidades educacionais, não garante o acesso ao conhecimento e nem pode substituir, tanto em carga horária quanto em qualidade, as atividades presenciais, e menos ainda pode responder pela formação integral do sujeito. Não podemos admitir uma equivocada naturalização do uso da EAD como simples forma de transposição (im)possível do cotidiano escolar, minimizando o papel da escola, reduzida à transmissão de conteúdos pré-fixados e descolados do contexto social em que se encontram crianças-jovens-adultos. A educação, enquanto processo amplo, exige afeto, troca, experiências coletivas que não são simplesmente passíveis de substituição tecnológica. Quando da retomada das atividades regulares, será de extrema importância a constituição de um espaço dialógico de ressignificação das relações sociais frente aos desafios que a pandemia impôs na ampla diversidade sócio-cultural-econômica das comunidades escolares. Não menos importante é a falta de acesso à infraestrutura digital necessária para aulas e ou atividades online, realidade da maioria dos estudantes brasileiros, que amplia as desigualdades educacionais a que estão sujeitos. Não podemos desconsiderar o acúmulo da área educacional sobre EAD e os limites da recuperação de estudos e reposição de aulas, nem escamotear a realidade que aponta para o atraso na democratização do acesso à internet e às tecnologias digitais no país. Isso não significa uma negação de busca por alternativas pedagógicas e uso de recursos tecnológicos, pelo contrário, são valorosas desde que contribuam para diminuir as desigualdades no acesso à educação e aos meios contemporâneos de comunicação social. Para tanto, é preciso pensar a EAD para além de uma perspectiva instrumental, sentido que prevalece nas disposições apresentadas.
Ressaltamos que a EAD não é a solução para o problema de reposição das atividades suspensas e nem o mecanismo mais adequado para reorganização do calendário escolar. Consideramos menor a preocupação em não entrar no ano de 2021 com atividades letivas de 2020, pois a questão principal é educação para todos com igualdade e qualidade.
Consideramos, também, fundamental que os sistemas municipais e estaduais tenham autonomia para definir suas formas de recuperação, assegurada a participação das comunidades escolares nas proposições e deliberações, seguindo o princípio constitucional da gestão democrática.
A luta em prol de uma educação de qualidade e de políticas educacionais que materializam em todos os níveis o direito constitucional à educação, não pode deixar de ser referência nas iniciativas governamentais de todos os entes federativos, inclusive neste período de crise sanitária e econômica. Portanto, são impróprias ações filantrópicas e assistencialistas que pretendam substituir o dever do Estado e dos órgãos públicos nos respectivos sistemas educacionais.
Alertamos também para o perigo de medidas com o propósito de deslocar, simular e substituir o currículo escolar. Não é possível simplificar e dirigir aprendizagens por mera transposição de conteúdos e atividades realizadas na escola para ambientes virtuais, desconsiderando o conhecimento já sistematizado nas instituições de ensino, por profissionais da educação, e cientificamente validados.
Somos professores e pesquisadores do campo da Educação, comprometidos com a garantia do direito à educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade para todos/as; reafirmamos a necessidade de políticas nacionais, articuladas com os sistemas de ensino federal, dos estados e dos municípios, envolvendo as instituições educativas, os estudantes, os profissionais da educação, os pais e responsáveis.
Nesta direção, destacamos a necessidade de:
- Fortalecer o pacto federativo cooperativo e promover condições para a efetiva instituição do sistema nacional de educação, como definido no PNE;
- Garantir o efetivo cumprimento dos direitos à educação e à qualidade do ensino, em consonância com a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional;
- Considerar as condições e as especificidades de cada nível, etapa e modalidade educacional;
- Não utilizar qualquer atividade de apoio e acolhimento, neste momento de suspensão de aulas, como instrumento para aferir presença e desempenho dos estudantes. Suspender calendários e atividades de avaliação dos sistema educativos.
- Estabelecer políticas articuladas para a educação, especialmente para as instituições públicas, considerando a situação de vulnerabilidade social, econômica, de inclusão e de acessibilidade de significativa parcela dos estudantes;
- Estabelecer políticas de formação e de acessibilidade para os profissionais da educação, zelando para a garantia de adequadas condições de trabalho;
- Garantir, por meio de gestão democrática e participativa e acompanhamento dos órgãos normativos e de supervisão dos sistemas de ensino, a articulação entre as políticas nacionais, estaduais, distritais e municipais e os projetos pedagógicos das instituições educativas;
- Viabilizar formas de comunicação entre as comunidades escolares e no âmbito de cada uma, promovendo diálogos respeitosos e formativos entre os profissionais da educação, os estudantes e suas famílias, de maneira que todo/as sintam-se seguros/as em casa e de que terão garantidos os direitos educacionais e a reorganização do ano letivo, tanto na Educação Básica quanto nas Universidades, com adequada atenção às futuras condições de trabalho, regras sanitárias e de sociabilidade, bem como a outros possíveis episódios de isolamento e perdas afetivas.
Assim reforçamos nosso posicionamento de que a situação atual tem evidenciado que é preciso retomar o papel do Estado e de suas políticas federativas, incluindo a efetiva materialização do Plano Nacional de Educação (PNE), e viabilizar condições de financiamento, organização e gestão democrática dos sistemas e instituições educativas, visando à garantia do direito à educação de qualidade, condição estratégica para o bem-estar social e o desenvolvimento socioeconômico.
Em 23 de abril de 2020, subscrevem
ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ANPAE -Associação Nacional de Política e Administração da Educação
ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
CEDES – Centro de Estudos Educação e Sociedade
ABdC – Associação Brasileira de Currículo
FINEDUCA – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
ABRAPEC – Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências
SBEnQ – Sociedade Brasileira de Ensino de Química
SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
FORUMDIR – Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras
FORPIBID-RP – Fórum de Coordenadores Institucionais do Pibid e Residência Pedagógica
FORPARFOR – Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do Parfor
Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
ADUFPB – Seção Sindical do ANDES-SN