Jaldes Reis de Meneses*
Toda história da cultura é também uma história da barbárie (Walter Benjamin)
Como abordar o golpe militar de 31 de março (ou primeiro de abril) de 1964, 47 anos passados?
Em sua bela biografia de Napoleão, publicada logo após o fim da Restauração francesa (a sequência de 15 anos de último retorno da dinastia dos Bourbons, na qual ficou evidente a quimera do projeto conservador de retorno do antigo regime), Stendhal faz uma observação decisiva a quem pretenda escrever a história de seu próprio tempo: o escriba vai se meter em exumar os companheiros de geração, as promessas que se dissiparam e os fracassos que ficaram feito cicatrizes, mas principalmente as viragens. O romancista anota que os homens que foram no passado os antigos radicais jacobinos são os mesmos moderados que conduziam naqueles dias os negócios de Estado. Arguto, Stendhal percebe um remoto sentimento de cumplicidade, de ele mesmo ele mesmo participa. No sentido stendhalniano, a geração que resistiu ao golpe de 1964, indiscutivelmente, é vitoriosa, a própria presidente Dilma Rousseff foi uma das que participaram do esforço de resistência armada à ditadura, dessa maneira servindo como exemplo do êxito. As gerações se apaziguam e confraternizam, alçadas à condição de elites.
No entanto, parafraseando um livro recém-editado (organizado por Edson Telles e Vladimir Safatle, a cuja leitura recomendo), deve-se fazer uma pergunta pertinente, mas incômoda: o que restou da ditadura? Quais as sobrevivências do regime de força em nossas instituições políticas, jurídicas e sociais? Tal indagação só pode ser respondida se virarmos pelo avesso o senso comum, se formos às zonas de sombra, enfim, se ousarmos encarar, olho no olho, a tragédia. Não é fácil. Quando ocorre o trauma, a reação espontânea é de imediato ativar as defesas do esquecimento.
O espírito de 1964 continua vivíssimo. Posso chocar e surpreender o coro dos contentes (como se dizia naquela época), mas o “espírito” de 1964 habita onde menos se espera: por exemplo, nas promessas de progresso e desenvolvimento, nas obras do PAC. Somente operando com esta chave analítica de longa duração pode-se compreender a revolta, sob a forma de greves e manifestações, que fizeram 78.000 trabalhadores dos canteiros de obras do PAC em Pernambuco (Suape) e Rondônia (Jirau) cruzarem os braços na semana passada. Ficaram expostos em Suape e Jirau a omissão do Estado, a visão arcaica do grande empresariado e o peleguismo dos sindicatos, mas também as jornadas de trabalho extenuantes, semi-escravocratas, a insegurança, o livre comercio de drogas (crack e cocaína).
Quem estudou a fundo a saga das grandes obras de infraestrutura dos tempos da ditadura, sabe à custa de quanto suor e sangue elas foram erguidas, e de como o lamento de suas vítimas foram soterrados, tanto nos porões da tortura como nos canteiros de obras.
Conhece – para ficar num único de tantos exemplos – o trauma da morte de centenas de operários na queda das vigas do pavimento inferior do Centro Administrativo da Gameleira (Belo Horizonte, 1971), fato proibido de ser noticiado assim como a guerrilha do Araguaia também estava sob o fogo cerrado da censura. (A propósito, a chamada “tragédia da Gameleira” rendeu uma extraordinária tese de doutorado do professor mineiro Antonio Libério Borba, na Unicamp).
Evidentemente, como mostra Vladimir Carvalho, no documentário Conterrâneos velhos de guerra (1980), sobre a construção de Brasília no governo JK, as tendências compulsivas do progresso na modernidade (encontramo-las como transfiguração estética já no Fausto de Goethe, 1801) vinham de muito antes, contudo foram exponenciadas, virou dispositivo técnico (para usar o precioso termo de Heidegger e Foucault) intrínseco ao regime militar brasileiro.
De maneira trágica, nas sombras invisíveis do contrato social da democracia, movem-se as mesmas diretrizes das grandes obras dos tempos da ditadura: a tendência à superexploração do trabalho nas regiões de vanguarda do desenvolvimento. Quando o assunto é pobreza, tendemos à superficialidade, a exemplo dos rebaixados critérios sociológicos de classe que decantam a ascensão de milhões à classe “c” no Brasil. O critério de reconhecimento de classe aferra-se ao consumo, esquecendo-se de abordar, concomitantemente, o complexo plano das relações sociais cotidianas, no qual necessariamente conta o mundo da cultura. Em resumo, ao mesmo tempo em que se permite a participação dos pobres nos benefícios do crescimento econômico pela via do consumo, eles são segregados em seus ambientes de trabalho e moradia insalubres, nos quais praticamente inexistem serviços públicos de educação e saúde de qualidade.
Vive-se e morre-se à míngua, embora se possa ter acesso à televisão e o celular. Só se pode acreditar em qualquer projeto republicano no Brasil se verdadeiramente ele vier ou olhar para baixo, encarar o desafio de eliminar a pobreza extrema não como desencargo emocional de consciência, todavia, paradoxalmente, como condição civilizatória de realização da própria luta de classes. Afinal, há luta de classes no reino da Dinamarca, contudo lá inexiste pobreza absoluta.
Há muita crítica estritamente política aos tempos da ditadura, e toda ela é vinda. Mas devemo-nos advertir que o “espírito” da ditadura só voltará à caixa de pandora caso lograrmos ultrapassar o umbral da epiderme política, se conseguirmos vencer a cegueira de olhos abertos que não conseguem enxergar.
*Professor dos Programas de Pós-Graduação em História e Serviço Social – UFPB