Marcelo Sitcovsky
Professor do Depto. de Serviço Social da UFPB
Presidente da ADUFPB
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na última quinta-feira, 27/10, determinando que o servidor em greve pode ter o ponto cortado desde o primeiro dia de paralisação, representa mais um ataque aos trabalhadores em geral e, em específico, aos servidores públicos de todo o país. Apenas quando publicado o Acordão é que de fato serão conhecidos os detalhes da decisão. Todavia, já é possível – mesmo correndo o risco de imprecisões – fazer uma primeira avaliação das motivações e implicações da medida que, na prática, considera por princípio ilegal qualquer greve dos servidores públicos. Vejamos:
1. Fica cada vez mais evidente que a Suprema Corte brasileira vem, nos últimos tempos, extrapolado suas funções, pois tem assumido o papel de legislador. Duas decisões recentes ilustram claramente como os Ministros do STF estão agindo fora de seus limites constitucionais. A primeira, na última quarta-feira, 26/10, quando o Tribunal Superior de Justiça decidiu sobre a “desaposentação” (o termo pode parecer estranho, mas refere-se a um pedido de recálculo para aqueles que se aposentaram, continuam trabalhando e depois solicitam que seja revisto o valor da aposentadoria). Na ausência de uma legislação específica, e com argumentos no mínimo inconsistentes, o STF decidiu proibir a desaposentação. Alguns juristas irão se contrapor arguindo que, na ausência de regramento específico, caberia ao STF a tarefa de decidir até que o legislador cumpra o seu papel. Mas a decisão mais grave é, sem dúvida alguma, aquilo que nos motiva neste pequeno artigo, pois o direito de greve é um direito constitucional inscrito entre as Garantias e Direitos Fundamentais da Carta Magna de 1988, no capítulo II. O legislador deixou claro que:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
§ 2º Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.
Cabe destacar que o legislador disciplinou em regramento específico o direito de greve (Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989), que dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais e regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Mas o fundamental neste debate é que a greve figura como um direito reconhecido pelo Estado democrático de direito. Portanto, do meu ponto de vista, não pode uma greve a priori ser considerada ilegal, que nos parece ser este o conteúdo político da decisão recente de nossa Suprema Corte. Não pretendo aqui adentrar ainda mais no pantanoso terreno jurídico.
Contudo, cabe ainda um pequeno comentário a este aspecto. Na prática, o STF, com a decisão sobre o “não direito de greve” dos servidores públicos, torna natimorto o debate que deveria ser travado no Congresso Nacional. Refiro-me à relação entre o legislado e o negociado. Esse é um dos princípios defendidos pelo governo no que diz respeito à reforma trabalhista. Em resumo, ao decidir que o Estado deve cortar salários assim que decretada a greve, sem nem ao menos ser pedida e julgada a ilegalidade da mesma, o Estado comete uma enorme arbitrariedade. Prevê ainda que, caso seja negociado, será possível o pagamento dos dias parados. Isso não significa outra coisa que não a concretização da máxima tão desejada pelos empresários: “vale o negociado sobre o legislado!”
2. A decisão dos ministros do STF pretende claramente coibir toda e qualquer reação dos servidores públicos neste momento de forte ataque aos direitos dos servidores e aos serviços públicos. Certamente, foi a adoção de uma medida preventiva. Aliás, um dos ministros da Corte deixou isso claro em seu pronunciamento. E ainda há entre nós aqueles que acreditam que Justiça está baseada numa neutralidade, que não está fundada em interesses classistas. Entretanto, nosso Judiciário tem demonstrado, sistematicamente, quais interesses ele defende.
O Estado brasileiro vive neste momento sob a hegemonia do capital rentista. Basta observar os objetivos dos inúmeros projetos de Lei e, acima de tudo, a PEC do teto dos gastos públicos (PEC 241, que desde que chegou ao Senado recebeu nova numeração – PEC 55), que na verdade não pretende diminuir os gastos do Estado e fazer economia nas contas públicas, mas sim aumentar o montante do fundo público que vem sendo desviado para pagamento de juros e amortização da Dívida Pública, que aliás o Estado brasileiro se recusa a fazer uma auditoria. As medidas adotadas na agenda do Governo Temer têm representado a ampliação e aprofundamento de tendências restritivas de direitos, ou mesmo como nomeiam alguns estudiosos, a destruição de direitos.
Uma análise das recentes iniciativas dos três poderes da nação (Executivo, Legislativo e Judiciário) sugere uma leitura atenta daquilo que um filósofo alemão, autor de uma crítica radical da sociedade capitalista, afirma ser função do Estado: o comitê executivo para gerir os negócios da burguesia. Os limites do presente texto não me permitem ir além de levantar uma provocação, pois uma análise cuidadosa exigiria um profundo e crítico debate sobre temas como economia política, democracia, Estado e sociedade.
3. Na prática o corte de salários já foi utilizado noutras oportunidades de movimentos de greve. Não esqueçam que, em 2015, o governo Dilma mandou cortar os salários dos servidores em greve e os trabalhadores do INSS tiveram seus salários cortados. Os trabalhadores das universidades públicas federais (técnicos-administrativos e docentes) já tiveram seus salários cortados no governo de Fernando Henrique Cardoso em razão de movimento paredistas. Todavia, com a decisão do STF, isso deixa de ser uma possibilidade para se transformar numa obrigação do poder executivo. Do ponto de vista concreto, a prática de assédio institucional deve ser drasticamente ampliada, pois os Ministérios passarão a exercer sem constrangimento prática de assédio moral contra os gestores de órgão públicos, o que, por sua vez, poderá refletir na repetição de igual prática contra os trabalhadores servidores públicos. Concretamente, tendem a se intensificar as práticas de assédio e perseguições no interior das instituições públicas.
4. Do ponto de vista político, a greve – nossa última opção num processo de negociação – terá agora um obstáculo a mais, pois o corte de salários representará uma dificuldade no processo de convencimento no interior das categorias para deflagração de uma paralisação, por mais necessária que ela seja. A decisão do STF, na prática, amplia uma série de medidas contrárias à organização política das categorias dos servidores públicos, mas não se limita apenas a este âmbito e já oferece elementos para avaliar repercussões também para os trabalhadores em geral. Está aberta a temporada de caça aos direitos políticos, civis e sociais!
5. Não podemos negligenciar que, entre nós, funcionários públicos, professores federais e trabalhadores em geral, há aqueles que estão aplaudindo a decisão sobre o corte imediato de salários em caso de greve dos servidores públicos. Tenho dito noutras oportunidades que, quando as coisas piorarem, e as coisas irão piorar muito mais, considerando o ritmo dos acontecimentos e nossa dificuldade de construirmos a resistência necessária, alguns desses colegas de trabalho virão desesperadamente à procura de espaços e formas de luta e resistência. Nossa tarefa é estarmos preparados para recebê-los para que estes se juntem às fileiras da resistência. Não cabe entre nós qualquer revanchismo. Para os demais que continuarem apoiando esse conjunto de medidas que atacam direitos dos trabalhadores – e eles existem! -, faremos aquilo que sabemos fazer: o enfrentamento teórico, político e prático, pois não abrimos mão de defender melhores condições de vida e trabalho. Que façamos das dificuldades nossa motivação para resistir e mobilizar. É chegada a hora de construirmos uma luta coletiva, efetiva e resistente contra esses ataques aos nossos direitos e, principalmente, aos direitos de todos os trabalhadores brasileiros!