A crise da greve da polícia militar da Bahia é grave. Não se trata simplesmente da greve de uma categoria em luta por reajuste salarial. Talvez desde talvez os remotos acontecimentos de 1988 em Volta Redonda (RJ), ocasião na qual operários da usina siderúrgica foram mortos em uma ocupação militar, nunca estivemos tão perto de um enfrentamento direto entre grevista de uma força armada.
Contudo, os acontecimentos da Bahia são até mais insólitos: naquela época, as tropas do exército dissuadiram uma rebelião que estava a acontecer no chão de uma fábrica, ao passo que as tropas militares de agora estão estacionadas numa praça que virou praça de guerra. Desde a luta das diretas-já, quando o tresloucado general Newton Cardoso, a mando de um decreto de emergência expedido pelo esquecido (felizmente) presidente Figueiredo, o Brasil volta a presenciar cenas de cerco a um parlamento por tropas militares. Sem tirar a razão emergencial de Estado do governo baiano, acossado pelos fatos, tomar a atitude forte de transformar do Centro Administrativo estadual em Salvador numa praça de guerra – afinal, vem aí o carnaval, a sociedade mani festa insegurança em andar pelas ruas, o comércio fecha as portas, etc. –, é preciso meditar sobre os processos de fundo de tais acontecimentos.
Entre o Brasil do século passado e o Brasil pós Plano Real, entretanto, há diferenças que não podem ser escamoteadas. Na era Sarney (1988), o Brasil se encontrava no auge de uma crise econômica parecida com a que vive hoje países europeus, a exemplo da Grécia e Portugal, enquanto, hoje, ao contrário, o país continua a viver, por sobrados motivos, um clima de otimismo. Tenho chamado as greves recentes no serviço público (saúde, educação, segurança) – em contraponto a muitas análises esquemáticas à direita e à esquerda – como “greves da afluência”, ou seja, trata-se um típico conflito redistributivo em torno da expansão do bolo econômico e principalmente do fundo público.
O fato é que houve recentemente no Brasil um processo de ascensão social daquilo que Paul Singer chamava em seus estudos de economia política desde os anos 60 de “subproletariado”, ou seja, a imensa massa popular que margeia o mercado de trabalho a partir do trabalho doméstico e informal. No entanto, embora tenha havido um crescimento da massa salarial em geral – inclusive no setor público (cujos índices são saturados pelas chamadas “carreiras de Estado” –, por outro lado ficaram de fora da bonança os trabalhadores médios do Estado, principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança pública. Pode-se reprimir como quiser, mas o problema da participação desses setores na massa de recursos do fundo público é uma questão que tem de ser abordada de maneira séria, sem volteios retóricos, urgentemente.
Política de rendas (diferentemente de aumentos salariais, conseqüência direta dessa política) não pode ser tratada como mero problema estadual corriqueiro, motivo do habitual entre governo e oposição nas assembléias estaduais (embora a bomba esteja explodindo na mão dos governadores, a maioria deles premidos pelos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal), mas de toda a federação e do executivo federal.
É mais do que hora de um acordo nacional a propósito da PEC 300, uma bandeira que mais tem sido utilizada como instrumento de demagogia de oposição aos governadores (inclusive da parte de parlamentares do PT, que agora está provando do próprio veneno) do que de propriamente de resolução. Parece ter sido preciso a crise estourar em um governo dirigido por uma liderança importante do PT para o governo federal, enfim, aparecer com o ar de sua graça. Acompanhemos os desdobramentos dos acontecimentos da Bahia, pois são bastante importantes. E que Baco tenha tranqüilidade para sair às ruas no carnaval. Evoé, Baco!, cantava em versos o poeta Manuel Bandeira.
Jaldes Reis de Meneses
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