Jaldes Meneses[1]
A respeito do filme “A hora mais Escura”, a partir de hoje (15/02), em todos os cinemas brasileiros.
A descrição de cenas de tortura é comum no cinema. Poderia citar de cabeça uma dúzia de filmes, desde os brasileiros “O caso dos irmãos Naves” (1971, Luis Carlos Person) e “Tropa de Elite” (2007, José Padilha), os europeus “A batalha de Argel” (1966, Gillo Pontecorvo) e “A confissão” (1970, Costa-Gravas), até o mais recente filme de Quentin Tarantino, “Django” (2012), no qual o pistoleiro negro (Jamie Fox) é posto às pancadas de cabeça para baixo se esvaindo em sangue, por obra de um criado trânsfuga de raça, Stevie, serviçal do proprietário de terras sulista vilão do filme, Monseieur Calvin Candie (Leonardo DiCarpio).
A diferença da tortura artificial nas caricaturas do universo ficcional de Tarantino, dado o próprio estilo inverossímil de seus roteiros, para a exibida em “A hora mais escura” (2012, Zero dark thirty, a partir de sexta-feira, 15/02, em todos os cinemas brasileiros) – o filme de Kathryn Bigelow concorrente a cinco Oscars que narra das circunstâncias da operação oficial de homicídio de Osama Bin Laden –, de natureza pseudodocumental e realista, é que se a primeira é sarcástica, a segunda se propõe “asséptica” e “impessoal”. Recordando a crítica de Lukács ao naturalismo literário do século XIX, pretende-se “descrever” em vez de “narrar”, como repete em outras palavras, aliás, a diretora do filme em artigo de repto ao jornal “Los Angeles Times”, para quem, no cinema, a “de scrição” não significa “aprovação”.
Evidentemente, Bigelow não defende a tortura. Aliás, ela é contra ao seu modo. Sua posição é mais matizada e representativa da concepção de mundo espontânea de vários estratos sociais liberais, o qual o filme pode identificar. Não se pretende adesão nem ojeriza, é como se tortura fizesse parte, infelizmente, dos ofícios realistas de um chefe de Estado (George W. Bush ou Barack Obama) e por delegação de poder dos agentes da CIA encarregados de “por a mão” na massa, enquanto, nós, cidadãos “comuns” experimentamos as frustradas tentativas de felicidade nas promessas das sociedades de consumo. A tortura é o lixo, o excremento, o lado B invisível, mas útil, dos porões.
O senador John McCain, adversário derrotado de Obama na sua primeira eleição presidencial, detestou “A hora mais escura”, por dois motivos, um pragmático e outro programático. No pragmático, acabaram concordando, McCain e Bigelow, pois ambos logo aprotaram em afirmar que a tortura não foi decisiva na investigações que levaram ao paradeiro de Osama. Nas palavras de Bigelow, o grande trabalho da CIA “foi de detetive”. Mas resta a discordância programática. Examinando bem, a discordância programática é apenas de medida. Velho senador republicano, certamente, McCain preferiria ver as guerras recentes do Iraque e Afesganistão, bem como a “ caça do terror”, pelas lent es patrióticas e justiceiras de um John Wayne, da maneira que o velho cauboi de celuloide filmou a conquista do Texas em “Álamo” (1960) e a guerra do Vietnam em “Os Boinas Verdes” (1968). Certos defensores do filme de Bigelow têm comparado as acusações do jogo político duro repúblicano aos processos criminais que sofreram Flaubert ou Badelaire no século XIX. Haja apelação. Em primeiro lugar, Gustave Flaubert e Charles Badelaire foram censurados na França por “antentado ao pudor”. Exatamente por não haver proibição que o cinema, esta forma de sonho social, na bela definição do marxismo “infantil” de Slavoj Zizek, é que os produtos mercantis do cinema devem passar pela decifração detetivesca da crítica da ideologia (não confundir com crítica de cinema).
A propósito, Zizek também tem criticado “A hora mais escura” em termos parecidos com os aqui enunciados. Advirto tratar-se de uma coincidência fortuita. Embora o seu artigo recente sobre “A hora mais escura” requente (Zizek está sempre requentando os pratos de sua cozinha) os termos de uma uma passagem do livro “Em defesa das causas perdidas” (2011, pp. 64/5), no qual atenta corretamente ao fato que pela primeira vez, após os acontecimentos de 11 de Setembro, o recurso ao uso da tortura foi apresentado pelos chefe de Estados como “algo aceitável”. No fundo, quando Zizek, defende a “violência divina” e “espontânea” do “terror” – mesmo que para se afastar do terrorismo da Al Quaeda (criticada por ele não por usar e abusar do terrorismo, mas por ter uma “intenção estratégica” em suas ações) –, em desdobramento lógico, ele abre os horizontes da prática da tortura, digamos, civil. A crítica de Zizek, portanto, não é dirigida à tortura tout court, mas à tortura enquanto prática de Estado, mesmo na forma do Estado em potência da utopria fundamentalista da Al Quaeda. È verdade que Zizek muda de cor como um camaleão e tenha desdito em entrevistas recentes muito do que escreveu; enfim, trata-se de um autor pseudamente malvadinho ainda em estágio infantil e talvez por isso seus contos de ninas e histórias da carocinha agrade a seus leitores.
Por isso, o republicanismo convervador, que não interage com imigrantes e minorias, começa a ser visto como um anacronismo político nos Estados Unidos e perdeu a segunda eleição para Barack Obama. Por isso, indício de que a interpretação “blazê” de Jessica Chastain no papel de Maya (uma analista da CIA que passau oito anos sem trégua na pista do paradeiro de Osama Bin Laden) é emblemática, o filme de Bigelow passa a mensagem de que a comemoração da execução do inimigo número 1 do Estado americano deve ser comemorada no máximo com um discreto sorriso de alívio, jamais como festas. Mocinha repleta de sonhos debutantes antes de ser recrutada para a CIA, Maya vai se tran sformar uma espécie de Eichmann de saias, também como o inocente carrasco nazista, uma conseqüência do frio imperativo das ordens burocráticas, talvez com a diferença de que Maya tenha mais “amor” (junto com mal-estar, é claro) ao que faz.
Essa a grande cilada do filme de Bigelow: no fundo, a discreta e sofrida comemoração de Maya está longe de pretender agradar os falcões do partido republicano, mas exatamente o descarrego de consciência dos liberais, mesmo os de esquerda do Partido Democrático, como se racionalizassem que a tortura é infame, contudo, pode haver momentos críticos em que pode ser necessária abrir, em horas cruciais, a “exceção” de uma regra universal das declarações ocidentais de direitos.
É como se a consciência culpada pensasse assim: fez-se a tortura (ou o eufemismo cínico das “técnicas aperfeiçoadas de interrogatório”), mas afinal o pesadelo acabou e agora podemos voltar a cuidar de nossas vidas e a praticar as boas regras de conduta do Estado democrático de direito. Paradoxalmente, por via indireta, o filme de Bigelow enuncia uma mensagem tétrica: o liberalismo é a face aparente e encenada do Estado e da política contemporânea, exatamente para esta face parecer rósea, torna-se necessário destampar de vez em quando os porões fedorentos da “tortura técnica”. Resta-nos concluir que se o liberalismo é a face encenada, ele já não nos serve mais como modelo civilizacional.
[1]Professor Associado do Departamento de História da UFPB. E-mail: jaldesm@uol.com.br
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