Jaldes Meneses
Neste exato momento, no mundo e no Brasil, dois acontecimentos parelhos envolvendo sujeitos endinheirados do “andar de cima” – a expressão que os economistas da escola acadêmica do “capitalismo histórico” ou “capital-mundo”, Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein, criaram e o jornalista Élio Gaspari popularizou entre nós -, por assim dizer, eletrizam a opinião pública esclarecida.
No primeiro, na Europa, um ex-funcionário franco-italiano do HSBC – uma casa bancária que nasceu suja, dos capitais amealhados pelos comerciantes ingleses na venda de droga aos chineses, motivo da “guerra do Ópio” (1839-1842) -,de nome Hervé Falciani, revelou uma lista de 100 mil correntistas vips (entre os quais 8.667 brasileiros) de contas secretas na agência Suíça do banco. As contas contém, na maioria, certamente, dinheiro vindo das falcatruas da evasão de divisas, sonegação fiscal e de lavagem de dinheiro do crime organizado. Esta é, em resumo, a narrativa do “Swiss Leaks”, mais uma vez confirmando a ironia de Brecht – “pior que roubar um banco, é fundar um banco.”
Já no Brasil, uma empresa estatal histórica do ideário nacionalista, a Petrobras – tornada sociedade anônima de capital aberto em 1997 (governo FHC), é bom que diga -, acordou de repente, direto do berço esplendido das glórias nacionais de exploração do Pré-Sal (o “bilhete premiado”) e do mais audacioso plano de investimentos de sua trajetória para o inferno da corrupção, das compras superfaturadas e da formação de um “clube” (cartel) das maiores empreiteiras brasileiras, cujos principais empresários estão presos há quase quatro meses em Curitiba.
Demoro mais do que deveria em repetir histórias sabidas pelo simples motivo de que, entre nós brasileiros, a recepção comum dos dois escândalos, em vez de reconstruir as pontes analíticas entre ambos (que são evidentes), optou, numa atitude esquizofrênica, por contrapor “escândalo A” a “escândalo B”, como se os delitos cometidos, por exemplo, pelo Grupo Queiroz Galvão (Petrolão) fossem realmente qualitativamente distintos dos cometidos pelo Banco Safra (Swiss Leaks). Não são. Swiss Leaks e Petrolão são as duas bandas apodrecidas de uma mesma moeda.
Dessa maneira, se cabe o argumento que os grupos da grande imprensa brasileira investem com estardalhaço na divulgação do Petrolão, em virtude das impressões digitais de pessoas ligadas ao PT e à base aliada dos governos Lula e Dilma, deixando numa zona de sombras o Swiss Leaks, certamente por envolver até no rol dos bandidos de colarinho branco mesmo nomes dos grupos de mídia, por outro lado, o verdadeiro debate não pode ser resumir a essa guerra de torcidas organizadas em torno de quem detém a maior botija ou quem denunciou primeiro. Menos que eventuais diferenças de tática política, mais estão em causa as afinidades eletivas do capitalismo, internacional e nacional.
Deixem-me interpor no artigo uma história exemplar.
Esteve visitando recentemente o Brasil o economista francês Thomas Piketty, autor do surpreendente bestsellers “O capital no século XXI.” Por que um livro especializado de economia, escrito de maneira elegante, contudo conservando o rigor da pesquisa, tornou-se um fenômeno editorial e popular? Longe de ser um profeta de mensagem revolucionária, ao estilo de Marx (o autor de o outro “Capital”), Piketty, em linguagem da melhor ciência crítica, retornou, em sofisticada base estatística e histórica, para o estudo de caso da economia mundial, um tema que já havia frequentado, em termos parecidos, os registros de Celso Furtado e Francisco de Oliveira, para o caso da economia brasileira sob o regime militar. Qual seja, a tendência histórica de concentração de renda e riquezas, nos altos escalões cosmopolitas do capitalismo contemporâneo, possidentes das chaves do capital (inclusive da corrupção do capital), dos meios de produção e inovação, remunerados pela renda do capital (dividendos de ações, bônus de “produtividade”, salários sem medida de valor, etc.), que invariavelmente suplantam historicamente a renda do trabalho.
Vale observar, Piketty provou a sua tese em conscienciosa pesquisa. Não lhe acoberta a hipótese nenhum humanismo, pura e simplesmente, mas números. A tese foi provada através do cotejo das declarações de renda nos principais países capitalistas, e nem os neoliberais brasileiros, em que pese os torneios retóricos, a exemplo de André Lara Resende no impagável programa Roda Viva de 09/02/2015, ousaram discordar. Resmungam pelos cantos da boca, apenas.
A “prova de Piketty”, por assim dizer, de alguma maneira, se tornou, involuntariamente, expressão sistemática da proposta espontânea dos movimentos de rua alternativos ao estilo do Occupy Wall Street, que denunciaram, em 2008/09, no auge da crise do subprime nos Estados Unidos, o colossal poder de 1% dos detentores em detrimento de 99% do cidadãos do mundo. Como se sabe, menos que o socialismo, Piketty, até ao contrário das vertentes radicais dos novos movimentos, sugere uma alternativa “dentro do sistema.”
Qual a proposta? Taxar as grandes fortunas e as heranças, visando corrigir a desigualdade entre os rendimentos de capital e trabalho, fazendo ressurgir uma proposta de engenharia social de capitalismo democrático, tantas vezes tentada por reformadores sociais do passado – a exemplo dos ingleses da sociedade fabiana (1884) e do conceito de cidadania social proposto por outro Thomas, neste caso Humphrey Marshall -, e tornados caducos nos anos 1970 em diante pela voga neoliberal a exemplo dos ingleses da sociedade fabiana (1884). Deixem-me recordar este breve momento humanista da burguesia liberal e ilustrada, em tudo contrário aos gatunos pragmáticos do Swiss Leaks e do Petrolão. Vale a pena. Em 1948, em celebre palestra em Cambridge, T. H. Marshall sugeriu construir, através da ampliação do status de cidadania (que nivela a todos, ricos ou pobres, ao menos no plano civil), em doses homeopáticas, ir introduzindo igualdade na desigualdade estrutural do capitalismo. Um quadro esclarecido da elite propôs e o Estado inglês encampou. Generosos tempos e propostas, postas em prática, também por motivos geopolíticos (a guerra fria e o campo adversário socialista da URSS), nas experiências de welfare state do pós-guerra europeu.
Aqui e acolá, aparecem iniciativas parlamentares interessantes, a exemplo do senador Lindberg Farias (PT-RJ), propondo a regulamentação do imposto sobre a grandes fortunas. Em tese, um imposto sobre as grandes fortunas no Brasil é questão das mais prementes. Aqui, 1% dos mais ricos apropriam-se – inclusive através da ilegal “renda corrupção” – de 25% das rendas nacionais, bem mais que os Estados Unidos, maior país capitalista do mundo, onde o 1% se apropria de 20% da renda. Temo, no entanto, que enquanto predominar no debate político brasileiro a cortina de fumaça da contraposição de defesa do “escândalo A” contra o “escândalo B” do adversário, não se irá muito longe no debate proposto por Piketty e os movimentos tipo Occupy Wall Street.
É preciso desanuviar as torcidas organizadas, compor um novo time e uma nova torcida. Para tanto, ainda é preciso fazer um balanço das transformações da Era do Lulismo. Sem dúvida, houve em anos recentes no Brasil, e foi detectado pelas estatísticas de medição do consumo, um processo de aproximação dos rendimentos dos mais pobres em relação às demais classes que vivem do trabalho. Contudo, não se inverteu, rigorosamente jamais se afrontou, nos anos processamento da afluência social do lulismo, a relação de concentração das altas fortunas em detrimento dos rendimentos do trabalho. Não é por acaso que a Receita Federal é arredia em abrir os dados do imposto de renda aos pesquisadores brasileiros, dificuldade sentida por Piketty no Brasil, que por isso resolveu excluir nosso país de seu estudo. Sentiram o drama?
Parafraseando e adaptando livremente a tirada antropofágica de Oswald de Andrade em torno do monólogo do Principe Hamlet, combater Swiss Leaks “E” Petrolão, em vez de optar torcer por Swiss Leaks “OU” Petrolão, eis a questão do Brasil.