Jaldes Meneses
Estive na terça-feira desta semana, na condição de presidente do sindicato do qual presido, a ADUFPB (professores da UFPB), de uma as duas tarde em animado debate na Rádio Tabajara com o empresário da construção civil e vice-presidente da FIEP (Federação das Indústrias do Estado da Paraíba), José William Montenegro, sobre o Projeto Lei 4330, das terceirizações. Sai de lá mais convicto da temeridade que seria para a sociedade brasileira a aprovação apressada desse projeto. Percebi que embora as posições de trabalhadores e empresários estejam polarizadas, as consequências – para mim, trágicas – da extensão da terceirização no Brasil à praticamente todas as chamadas “atividades-fim” do trabalho ainda é um assunto obscuro para a maioria das pessoas comuns. No entanto, felizmente, as pessoas têm sensibilidade, logo intuitivamente percebem que se está pretendendo perpetrar entre nós um verdadeiro “golpe parlamentar” que, caso efetuado, derrui as bases o que chamei no debate de “contrato social brasileiro”.
Existe mesmo um “contrato social” brasileiro, ou isso não passa de uma figura de retórica? Para começo de conversa, embora a contragosto do discurso superficial e avesso a grandes painéis dos defensores do PL 4330, é-se impraticável pensar seriamente a questão das terceirizações sem esboçar, preliminarmente, uma embocadura histórica. Toda boa filosofia começa pelos prolegômenos. Desconfiem dos leitores que pulam os prolegômenos.
Ora, uma das principais maneiras de compreender o século XX é que nele aconteceu, em vários continentes, um complexo processo que denomino de “constitucionalização do trabalho”. Antes escorraçado e fora da lei, só admito na sociedade como indivíduo portador isolado de força de trabalho, a entidade coletiva chamada “os trabalhadores” compôs, através de formas sociais autocráticas e corporativas – o Brasil do Estado Novo varguista -, ou democráticas – o Welfare State dos países escandinavos -, por via de interpelações carismáticas ou de acordos mediados pelo Estado entre as classes e os partidos de classes organizados, um dos pilares imprescindíveis do “contrato social” contemporâneo.
Pode-se afirmar, e é verdade, que os trabalhadores no século XX fizeram um acordo fáustico, um jogo de perdas e ganhos que ficou conhecido como “compromisso fordista”. Neste compromisso, os trabalhadores abriram mão do controle do processo de trabalho – vale lembrar que o fordismo significava uma distinção rigorosa entre planejadores e executores. Sem dúvida, aumentou a alienação do trabalho. Contudo, em contrapartida à alienação os trabalhadores tiveram acesso, pela via do aumento médio dos salários, aos bens de consumo que eles mesmos fabricavam (especialmente o automóvel), mas principalmente à cidadania política, e através desta aos direitos e serviços sociais.
As primeiras críticas ao compromisso fordista não vieram dos neoliberais, mas da esquerda radical, os trotskistas, na maioria das vezes (nem sempre, houve exceções) arredios à interpelação populista, bem como do “marxismo ocidental” de um Herbert Marcuse, entre outros, que tematizou nos anos 50 a “integração passiva à ordem” da classe operária européia, ou até a “genealogia do poder” da filosofia francesa de Michael Foucault. Num dos primeiros textos de Marx, “Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel”, o profeta do comunismo afirmava que a classe operária era revolucionária por que não participava das estruturas políticas corporativas do Estado alemão. Ela nada tinha a perder. De fato, a partir da erição do “compromisso fordista”, a classe operária não só participou – através dos grandes sindicatos e partidos de massas – como tinha muito a perder.
O Brasil não é a Europa. Na particularidade do caso histórico brasileiro, tanto a CLT de 1943 como a Constituição de 1988 significa, em termos profundos, os compromissos históricos de nosso processo de “constitucionalização do trabalho” (no primeiro caso) e de edificação de um Estado Social brasileiro (no segundo caso). Precisamos ver CLT e capítulos sociais de 1988 como pares de uma síntese dialética. Costumo afirmar com ironia que os manifestantes do dia 15 de março não quiseram “ir a Cuba” e podem acabar estacionando na “Estação Pequim”. Por quais motivos?
Sem dúvida, já são mais de 12 milhões os trabalhadores terceirizados no Brasil, envolvendo as “atividade-meio”. Nelas labutando, se encontram, em resumo, os pobres. Ou seja, os extratos mais baixos da estrutura social brasileira. Falamos em milhões de brasileiros, na “ralé” (Jessé de Sousa, inspirado em Florestan Fernandes), ou “trabalhadores da massa marginal” (Armando Boito). Não é momento de entrar em controvérsias conceituais, mas o fato é que o “contrato social” brasileiro ainda não encontrou, em que pese os populismo do varguismo e do lulismo, um lugar de ascensão sustentável dos pobres.
Em vez de regulamentar o trabalho desses 12 milhões (como, aliás, era o propósito do PL 1621/2007, do deputado Vicentinho), ao contrário, o PL 4330 pretende fazer a degradação e a precarização subir mais degraus no mundo do trabalho e da estrutura social. Vale dizer, o alvo de desconstrução de direitos da nova constitucionalização da terceirização são os trabalhadores qualificados de diploma superior. Serão esses os novos excluídos do “contrato social”, que vão se juntar aos pobres de sempre na distopia (certamente paradisíaca para o capital) da “nova China” brasileira, terra de natureza abundante, desprovida de desenvolvimento de tecnologias de ponta (onde andam as discussões de conquistar a nossa autossuficiência em nanotecnologia ou em chips orgânicos?), mas pródiga em moer o trabalho das gentes.