Por Janio de Freitas
Manuel Zelaya não tem relevância alguma; o que está em questão é o princípio básico da democracia
O COMPONENTE fundamental, na situação criada por Manuel Zelaya ao abrigar-se na embaixada brasileira em Honduras, perdeu aqui em interesse para dois aspectos secundários. São eles: Zelaya surpreendeu a embaixada, conforme a versão oficial brasileira, ou tudo estava combinado com o governo Lula? E chegou mesmo à vizinhança de Honduras, em El Salvador, usando avião emprestado por Chávez, ou não?
O que está no centro da atual situação é o mesmo que deu importância, desde o primeiro instante, ao episódio todo: é a derrubada de um presidente eleito e no exercício legítimo do mandato, em contraposição à Carta Democrática em que os países latino-americanos comprometeram-se a não mais admitir golpes de Estado em sua região. Zelaya recorreu à embaixada e a embaixada o recebeu, com ou sem entendimento prévio, como parte da ação contra o golpismo.
Manuel Zelaya, como pessoa ou como presidente, até hoje não tem relevância alguma. O que está em questão é o princípio básico da democracia, ainda que nos países latino-americanos a prática da democracia não avance muito além do básico. Como aqui mesmo se está constatando a propósito da atitude do governo brasileiro, criticada na imprensa&cia porque Zelaya é apoiado por Chávez na luta para recuperar a Presidência hondurenha; e no Congresso, onde a oposição vê o Itamaraty como extensão política de Cuba.
Não falta uma certa graça a essas reduções do fundamental ao secundário, ou menos do que isso. Solicitado pela GloboNews a uma análise do problema, o ex-embaixador Luiz Felipe Lampreia apegou-se depressa à existência de entendimento prévio, como ele prefere, ou à chegada surpreendente de Zelaya à embaixada. Sua crítica, como sempre em nome das regras diplomáticas, mais uma vez esqueceu este pormenor útil: Lampreia foi ministro das Relações Exteriores de Fernando Henrique, que proclamou Fujimori “grande democrata” depois que esse “presidente” até fechara o Congresso do Peru.
Lula foi para o outro extremo, em seu discurso na ONU. Em trecho por certo encaixado de última hora, afirmou que “a comunidade internacional exige” a devolução da Presidência hondurenha a Zelaya. Quem estava diante de Lula eram os representantes da tal comunidade internacional, no mínimo estarrecidos ao ouvir a exigência que não sabiam ter feito.
O pronunciamento de Lula, aliás, já era bastante medíocre em outras abordagens. Nem uma colocação nova, tudo no seu tom de comício. Mas dizer àquele plenário que o Brasil foi o último a entrar na crise e o primeiro a sair “porque não permitimos especulação financeira” é, pior do que inverdade grosseira, de envergonhar. Não havia no plenário da ONU quem não soubesse que, há anos e anos, torrentes de dólares e euros vêm especular com os juros recordistas e o cassino das Bolsas, levam os lucros fáceis e montanhosos, voltam e saem, sem cessar, sob o estímulo e o agradecimento do governo. É o próprio território da especulação.
Como Lula e Zelaya vão conduzir o impasse, agravado pela eclosão da violência, não está em mãos deles. Tudo passa a depender de quantos e quais outros dispõem-se a entrar com as suas, para elaborar a solução ou a “solução”.
Folha de S. Paulo, 24/09/09